quinta-feira, 20 de março de 2014

Uma tradução de Valéry *

Teus passos, filhos do silêncio,
voltam-se lentos e sagrados
para o leito da minha vigília
passos mudos e gelados

Pessoa pura, sombra divina
como se detêm doces esses passos
Deuses! Todos os dons que adivinho
vêm a mim sobre teus pés nus

Se teus lábios se adiantam
e se preparam
para apaziguar meus pensamentos
com o conforto de um beijo

Digo: não te apresses nesse gesto terno
doçura de ser e não ser
pois eu vivi de te esperar
e meu coração precisa dos teus passos


* Tradução livre a partir do poema “Les pas”( Os passos), de Paul Valéry(1871-1945)

quarta-feira, 19 de março de 2014

Casarão da poesia

Transportes Currais Novos
está patrocinando e formando
indivíduos de alto calibre
versáteis, versados em todo tipo de contemporaneidade
e antiguidade
inscrições abertas:
literatura de cordel e vanguarda
cinema na rua, desenho animado, gravura
violino, guitarra, sanfona
teatro e todas as outras artes
estamos dando continuidade
ao programa cultural da cidade
nosso lema:
para além da seca somos chuva
para além dos incêndios somos calma
tungstênio é nossa alma

segunda-feira, 17 de março de 2014

A astrônoma e a lua

Viagem à lua tá fora de moda
pois para lá viajo todo dia
acompanho a lua minguante
a nova, a crescente,
a cheia
tô uivando dentro do telescópio
e envio meu grito para lá
a lua é dos lobos, dos poetas,
das naves e das aeronaves
a lua sim é que o lugar

sexta-feira, 14 de março de 2014

me travesti de poesia

meu amado
onde estou não existe geografia
e não está finda a minha sorte
estou a fim é de sorte
meu leito é do mundo inteiro
não estou perto nem longe
não estou tardando querido
onde estou não existe tempo
mas aceito ir aí como o vento
com os teus cabelos brincar
aceito ser sua musa fugaz
por uma noite apenas
e nada mais

quinta-feira, 13 de março de 2014

Um poema de Castro Alves

                                Onde estás?

É meia-noite...e rugindo
Passa triste a ventania,
Como um verbo de desgraça,
Como um grito de agonia.
E eu digo ao vento, que passa
Por meus cabelos fugaz:
" Vento frio do deserto,
"Onde ela está ? Longe ou perto?"
Mas, como um hálito incerto,
Responde-me o eco ao longe:
" On! minh'amante, onde estás?..."

Vem! É tarde! Por que tardas?
São horas de brando sono,
Vem reclinar-te em meu peito
Com teu lânguido abandono!...
'Stá vazio nosso leito...
'Stá vazio o mundo inteiro;

E tu não queres qu' eu fique
Solitário nesta vida...
Mas por que tardas, querida?...
Já tenho esperado assaz...
Vem depressa que eu deliro
Oh! minh'amante, onde estás?...

Estrela - na tempestade,
Rosa - nos ermos da vida,
Íris - do náufrago errante,
Ilusão - d'alma descrida,
Tu foste, mulher formosa!
Tu  foste, ó filha do céu!...
...E hoje que o meu passado
Para sempre morto jaz...
Vendo finda a minha sorte,
Pergunto aos ventos do Norte...
" Oh! minh'amante, onde estás?"


                                                      Bahia
                                                    
                                             Antônio Frederico de Castro Alves
                                              em " Espumas Flutuantes"

































quarta-feira, 12 de março de 2014

Anúncio de Antiquário

Adaptação delicada, com lírica nordestina,  presença e voz de Ademilde Alencar em Macaíba-RN
Poema do livro Invenção de Eurídice.

terça-feira, 11 de março de 2014

O amor nos tempos da Segunda Guerra

                                                                                 dedicado à minha mãe Francisca

                                                                        " A vida sem música seria um erro"
                                                                Nietzsche

                               
Há quem tenha medo de olhar os astros, quem tenha medo dessa real grandeza, mas os astros não são perigosos, ou  será que são? Alguns astros estão mais desprotegidos como a lua,  sem atmosfera, tudo que nela esbarra vira cratera e dor.
Fico lembrando de alguns dos meus amores, o sabor dos nossos beijos era uma mistura de manga com morango, strawberry and mango,  e eu amava um outro que fumava  cigarros Lucky Streit, o gosto de cigarro na boca. Fumar já foi muito glamouroso, meus cabelos tinham cheiro de cigarro, eu cheirava à fumaça e pérola, vivia toda  esfumaçada, toda perolizada, era uma delícia... tudo muito Pearl Habor,  como eu queria usar um perfume Pearl Habor...E tinha um outro que adorava me trazer passas Sun-Maid, eu me sentia a moça ensolarada da embalagem, Sun-maid growers of california, just grapes and sunshine...

 

E o leite moça, essa última latinha que  comprei...será que é de desde 1921 mesmo? Se for, é do ano que nasceu minha avó, portanto,  sou neta de uma senhora de respeito já posso até ser mumificada e enlatada. As três últimas gerações de mulheres da minha família têm a idade da  lata de leite moça, sou neta  da senhora leite moça lunar. A primeira vez que minha avó provou desse leite foi justamente na Segunda Guerra e até hoje eu e minha mãe gostamos e nos deliciamos. Os médicos e os homens dizem não. Não tomem leite moça, olhem as taxas, que taxas gente que nada, eu adoro leite moça, a vida sem leite moça seria um erro, um ermo, uma tristeza sem fim.   Há dias que amanheço meio amarga, dias em que se diz adeus aos agrados sagrados, e haja leite moça para me adoçar, é preciso me embriagar, tomar um pequeno porre de leite moça, leite moça rejuvenesce, faz a gente ser criança de novo e um beijo com sabor de leite moça salva qualquer um. Ainda mais olhando para essa paisagem do Cristo Redentor. Cristo lunar de braços abertos sobre a cidade, assistindo a tudo que está acontecendo, branco como a lua e como a paz. Distante como um astro aceso sobre o Corcovado. Banho de lua, banda da lua, lua dos poetas e amantes que, de um jeito ou de outro, descobrem de onde é que o amor vem. Vai nascendo das palavras, das mais banais às mais altas, sejam frascos de perfume, sandálias de camurça, trem, avião, navio, tudo isso a gente tem, viajando dentro do corpo, quando a paixão fulminante bate à porta, quando ela finalmente vem.

segunda-feira, 10 de março de 2014

love center

energia elétrica
fabricante faiscante
marca fêmea
modelo 1970
tipo de degelo fogo
tensão tesão vênus
mais eficiente
amar berrar
criar desejar
menos eficiente
consumir-se sem solidariedade
na energia adotada no clima tropical
220 00 110 wolts
voltas, revoltas, volutas, lutas
muitas volúpias o mundo dá


domingo, 9 de março de 2014

cinema mudo

era a primeira vez na vida
que o menino tinha recebido
notícias daquela terra
na guerra fica tudo tão diferente
os trens, os navios,
os trilhos entre as chamas

Ele dizia: Você não acha que essas pontes
já queimaram o bastante?
é tanta fumaça
que a gente nem consegue respirar

e perguntaram ao menino:
mas o que você preferia
se alistar ou não se alistar?

- claro que eu preferia me alistar
como eu aceitaria uma guerra
sem que eu fosse para lá?


sábado, 8 de março de 2014

Luísa

Não sou precisa
nem sólida ou líquida
Sou matéria que hesita
entre muitas feridas
não sou precisa
não tenho fórmula
não me equaciono
não tenho lógica
Não sou precisa,
meu caro,
lamento
não tenho siso nem senso
e ando vestida de vento

sexta-feira, 7 de março de 2014

Descoberta no espelho

Tua pequena varize
se insinuando na perna
fino rio de sangue azul
onde as tristezas navegam

herança de tua avó, de tua bisavó
marca do teu trabalho
do trabalho delas
cicatriz do filho que esperaste
e das escadas que subiste

tua pequena varize
não é doença ou velhice
mas antes sinal de beleza
irmã dos rios, dos navios e da chuva
irmã de todas as coisas
que ultrapassaram limites

quinta-feira, 6 de março de 2014

A equilibrista

Quedas riscos matéria
tudo um jeito de iludir

A um perfume de incêndio
vou entregando meu corpo
deixando para trás edíficios
torres fragas
e todas as ameaças de cair

quarta-feira, 5 de março de 2014

O espantalho

Ao meu redor cresce verde a lavoura
e eu sou de seca palha

Ao  meu redor homens se movem e trabalham
e eu resisto imóvel ao meu ofício triste

Estou cercado de arame por toda parte
por toda parte assusto pássaros que amo

Meus braços estão abertos para o espanto
não para o trabalho ou o abraço

Meu corpo de palha seca
nunca sentiu a volúpia dos bichos

Vivo abismado e só
escancarado sob a luz dos astros

terça-feira, 4 de março de 2014

Oração a São Miguel Arcanjo

Se houver perigo esta noite,
preciso que me abrigues

Não te fies no delicado trato
que tenho com os monstros

Eles mentem
Nós mentimos, todos mentem

Se houver perigo esta noite,
não penses que sou forte
só porque vivo só
e conheço toda a ilha
e domino palavras e com elas
construo armas e escudos

Se houver perigo,
preciso que sejas meu pai,
forte, amigo,
afastando com a espada os inimigos

Preciso que pises sobre o meu terror
como pisarias mansamente
sobre um demônio adormecido

segunda-feira, 3 de março de 2014

Morro da Forca

Minha coragem me deixará leve
suspenso entre olhares abismados

Pela última vez ouço o vento
Basta uma corda, basta um salto

E nunca mais as igrejas
e nunca mais essas ruas
e nunca mais a volúpia do sol
sobre minha carne

Talvez seja só um exílio
uma leveza erguida sobre as pedras
um modo desconhecido de ser pássaro

domingo, 2 de março de 2014

Livres reflexões sobre Descartes e viagens

Assim como Sócrates, salvaguardadas as devidas diferenças, Descartes(1596-1650) busca a fundamentação para um saber autenticamente filosófico não entre os homens mais cultos de seu tempo, mas a partir de uma investigação de si mesmo e da conversa com homens e mulheres de múltiplos pontos de vista. Acrescentando à reflexão filosófica o conhecimento vivo de variados costumes, as viagens e a experimentação de si através das circunstâncias que a vida nos coloca. Nesse sentido, após ter estudado em uma das melhores escolas de sua época e de ter acesso a toda a cultura veiculada pelos livros de seu tempo, considerou que, em termos de aquisição de erudição, esses estudos já teriam sido suficientes e que seria preciso, sem negar obviamente a utilidade de uma boa erudição, dar um passo além dela e procurar algo constante e firme nas ciências, constância essa que não tinha encontrado na disputa dos filósofos da época com seus variados discursos a respeito de qualquer tema. Essa é uma das razões mais fortes para que tenha pensado que o caminho dos livros não é o único a ser traçado por quem busca o conhecimento. Nossa razão, no sentido cartesiano, é entendida como algo que pensa, duvida, nega, quer e não quer e é muito mais acessível ao conhecimento que a nossa realidade corporal. É também a faculdade de discernir o verdadeiro do falso. Analogamente ao pensamento socrático, ele pensa que basta julgar bem as coisas para proceder bem. Acrescentemos a isso uma outra afirmação cartesiana, assumida no texto Princípios da filosofia, em que a filosofia é entendida como o conhecimento de todas as coisas que o homem pode saber para a correta condução de sua vida, a conservação da saúde e a invenção de todas as artes...