domingo, 31 de julho de 2011

Telha enquanto cabelo

Oráculo

O pássaro no seu voo encontrará o infortúnio
Será ferido por um raio
seu coração de ave trespassado
por setas de ilusão e de beleza
Querendo o temível
e o transgressivo
o pássaro assim tão desmedido
poderá espatifar-se no rochedo
ou despencar no mar
atordoado
no voo proibido do desejo

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Canção de brisa e espanto

Ninguém conseguiu segurar tua vida,
menina vestida de bailarina.
Desenhos fortes nos olhos
Cabelos pretos demais,
erguidos para o alto,
góticos.
Nenhuma mão nem voz humana
conseguiu reter tuas canções
de brisa e espanto.
E não gostavas do odor dos peixes mortos
e estavas a esquecer as letras dos teus blues.
Não querias que fosse exatamente assim
mas era.
Era teu retorno de Saturno:
Te encantaste.
E seduzida pelo teu encanto,
eu canto

quinta-feira, 21 de julho de 2011

O chão pensa

Arthur Bispo do Rosário

( Poema dedicado a João Marcelino)

Me prendam que estou
me transformando
em rei em verso em canto
Que venham as virgens em cardumes
Que venham moinhos e gigantes
Por onde passo as coisas
hesitam por seus nomes
tal a minha fúria
Vestem-me de louco
mas sou apenas
um arquiteto de retalhos

Enquanto outros acendem
lampiões estradas pontes
acendo reinos dulcinéias cartas
Bordo delírios em panos
De tudo que acho perdido
teço um manto e um sonho
Chamam-me de louco
Que venham as virgens em cardumes
Sou apenas
um arquiteto de miragens

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Sala de visitas

Essas fotografias esticadas com zelo
atadas umas às outras
na banca de revistas
ou penduradas com pregos em nossa casa
são máscaras, fios, arcas
paredes descascadas
onde buscamos espelhos, marcas
rochedos onde aninhar as águias

E como todos posam assim sempre sorrindo
tem-se a impressão
falsa e às vezes quase intacta
de que ninguém está feroz nem triste
e de que nesse reino de retratos
não há mágoas

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Grafite

Banksy

Preciso cobrir com gestos essas ruas
pintar, escavar, tornear
abrandar as paredes do meu jeito
Preciso dizer-lhes algo
assaltá-las
transformar o que sobra
traduzir as sombras em desejos

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Ariadne

I

Foi exatamente isso que ela fez
Fugiu com o trapezista do circo
Largou terras, pratarias,
todos os bens da família
todos os deveres leais
Por isso agora vive numa tenda
e é errante, fumante, amante
pobre, pobre, pobre de marré, marré marré
e rica, rica, rica de muitas marés

Mas quem te ancora, mulher,
quando o vendaval vem solto sobre as águas?
Quem pode te proteger?
Foi nisso que deu
Quem mandou fugir com o trapezista de circo, menina?

E a moça fugitiva canta tentando esquecer:
Eu sou pobre, pobre, pobre de marré, marré, marré
e sou rica, rica, rica de muitas marés

II
Mas quem disse que o trapezista de circo
queria mesmo essa moça de família, seda e mimos?
Quem disse que não era mais uma forma de poder?
De querer vencer os ares e desafiar os lares?
Exibi-la pelos bares
como conquista circense
bicho doméstico domado
pela força de mil artes?

Que será dessa mocinha na mão desse saltimbanco?
Será que será trapezista
ou lavará o chão que ele pisa?

O restante dessa estória
só o destino vai dizer

III

Alguém por aí versado em mitologia
pode até dar um palpite:
Talvez seja um destino de Ariadne,
largada por Teseu,
resgatada por Dioniso...

Mas pode ser que não seja
e para dizer a verdade
talvez essa Ariadne
não queira nem circo, nem pátria
talvez ela mesma se salve
Isso só o diabo sabe

sexta-feira, 1 de julho de 2011

A musa

Uma predisposição musical
antecede em mim a palavra poética.

Schiller

Posso ouvi-la com voz de demônio ou deusa
em canções de desespero ou leve melancolia
Posso ouvi-la do alambrado das casas
da zona portuária ou de montanhas bem altas

Ouso guardá-la em meu desassossego
dentro dos espelhos
no que restou nos cinzeiros
dos amores que tive e queimei

Meus pulmões em brasa precisam do seu ar
Só por ela respiro
por ela entro nas águas
Fico boa de tudo e nunca mais vou tossir

Por ela invento bruxedos
Faço fogo, amor e guerra
Largo todos os meus vícios
Troco todos os meus reinos