sábado, 28 de setembro de 2013

Praia de Botafogo

Dizem que o mar é impróprio para banho
falam de vendavais, enchentes, blecautes
ocorre, no entanto, que o bombardeio não passa

Debaixo das palavras esconderam essa paixão
pelo incêndio e por tudo que  inflamava:
O Irã, a Pérsia e a Grécia

Debaixo de cabelos e barbas
os rostos das pessoas na calçada
crepitavam, ardiam, doíam

e não estancaram nunca mais
nem as faíscas, nem as fagulhas,
nem as lâmpadas queimadas

Não param nunca de arder
como se não tivessem passado meses , anos
e séculos
como se há pouco tivessem acendido
esse fogo calmo e feroz
que vem por dentro de tudo
e não se cala

terça-feira, 17 de setembro de 2013

lírico com guarda-chuva

Alcancei a brandura dos pântanos
já convivo bem com a escuridão
ainda assim ilumino
brilho, viro raio, relâmpago
Sei ouvir a leveza
aprendi a tocar com zelo as imagens
brinco com as palavras escândalo,
sândalo, vândalo
e fujo contente da vida para o violão

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Dialética

mesmo  com todo mal que o mundo perfeito de Platão me fez
vou buscar sossego nas águas mais quietas
procurarei alegria nas festas
dançarei para os deuses
farei oferendas
posso beber chuva, navios, viagens
e aceitar só o que é miragem
Se eu pudesse me dedicava à matemática
ah Platão, safado, agora entendi
por que você rasgou suas tragédias
foi para sobreviver
não sei se conseguirei, como você,
viver de geometria
mas eu vou tentar
os círculos, os cálculos
a invenção dos astros perfeitos
deixa de me enganar, Platão,
eu quero rir
quero  comédia
no próximo carnaval pode ter certeza
nunca mais me vestirei de cisne
irei fantasiada de número
assim quem sabe eu te venço
e viro pura equação: igualdade, fraternidade
e liberdade
Você me enganou também com a expulsão
dos poetas e artistas na República
queria esconder da gente a salvação
possível só pelo jogo, pela imagem e ilusão




domingo, 15 de setembro de 2013

Ideal

Platão me enganou fingindo que existia um mundo perfeito
não existe, ele sabia que não existia
mas inventou esse mundo para que a gente rastejasse por ele
para que a gente buscasse, tivesse sede
Por que sem sede que graça a vida tinha?
Ninguém se engane com um diálogo sobre amor
que se chama banquete
não é sobre amor é sobre guerra
ali ninguém se sacia
não há banquete 
e todos morrem de fome

Motim


Diotima,
por que me trouxeste essa tortura?
eu estava contente com os filhos que tinha
com a sensação de brandura
serenidade e descanso
mas sabes quantas vezes quis cortar meus pedaços
e o quanto não tenho beleza
e continuas a me fazer perguntar sobre isso tudo
Diotima, demônio, feiticeira
como eu queria te matar e parar de me indagar

tumulto

Sim, foi esse desejo que inventou todas as artes,
a tecelagem, a medicina, os arcos
as profecias
a metalurgia
a astronomia
um desejo que não é justo, nem sábio
nem feliz
não é perfumado mas carente de perfume
não é verdadeiro mas quer a verdade
não é corajoso mas procura  coragem
E o que fazer agora que todas essas faltas
me fulminaram a calma
eu que não tenho músculos
nem força nem bondade? 



sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Performance

Não é só para apaziguar
as guerras
é para mudar de rosto, de roupa
de corpo
fraturar-se, quebrar-se
transformar-se
ser despedida e raiz
espanto
Não é só para cantar
é para mudar de ângulo
de geografia
como as nuvens mudam de forma
também mudamos de olhos e cílios
de hábitos e de lábios

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

O banquete

até o sal elogiaram
e não louvaram o amor
mesmo que viesse com geadas e granizos
mesmo que perturbasse as plantações
e inquietasse as órbitas dos astros
o amor e até o ódio nos salvariam
e mesmo que fosse doença
também seria cura
e mesmo que não tivesse a quem se dar
também seria amor
mesmo que não fosse por pessoa alguma
e fosse só memória, promessa ou guerra
também seria amor
e se fosse passageiro também seria duradouro
e se fosse duradouro também seria passageiro
e se fosse solidão também seria companhia
se fosse mutilado também seria o todo
e mesmo se estivesse errado também seria certo
e se fosse feio também seria belo
e se fosse violento também seria delicado
e mesmo se estivesse perto também seria distante
e se estivesse distante também seria perto
porque ninguém pode entender o amor nem o ódio
nem a solidão nem outros mistérios

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

astrônoma autodidata

Te contei que recebi meu exame de sangue?
Estou toda contaminada de alumínio
e disseram que Michael Jackson desceu
só para cantar para a gente:
eu não confio em quem não toma café
não quero sair ileso dessa vida
quero cicatrizes no rosto, na face, no jeito
dessa vez desceu sem máscaras
Eu nem sabia que isso ia acontecer
a lua tava vênus
a lua trespassou vênus
Isso só acontece de quantos em quantos anos?
Não tem uma bandeira de um país que é assim?
Que país é esse, é lá Arábia?
eu só pensava no telescópio e nesse país
e em um maneira de estar lá mesmo sem estar

sábado, 7 de setembro de 2013

O teu demônio

O teu demônio me segue
anos a fio
Tece flores para mim
divide meu corpo em partes

Ele me culpa
acena feliz por trás das labaredas
dança ao meu redor
cresce como uma planta
aparo suas bordas seu rabo seus chifres

O teu demônio me encanta
como um retrato antigo amarelado
uma xícara de louça no mercado

O teu demônio me espanta
canta para mim todas as noites
me arde me explora me atormenta
O hálito quente sobre a minha boca
a febre sempre

O teu demônio vai embora hoje
eu fujo dentro dele a galope
e vivo dentro dele feito um passarinho
feito uma coisa miúda enorme pobre
dilatada como um crucifixo
dura como uma esmeralda

Me esmero e espero
um dia me chamo Laura
tu me abocanhas os peitos
eu te abocanho a alma

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Orfeu despedaçado

Há não sei quantas armas
apontadas contra minha cabeça
e ameaçam me esquartejar depois
primeiro um braço, depois uma perna
todos os meus pedaços cortados
como cactos para o gado
e ainda querem dar meus ossos aos cães
há não sei quantos revólveres
apontados contra minha cabeça
não sei quantos pássaros  mutilados
uivando
o piloto já saiu baleado com a mão no peito
a aeromoça de olhos vendados foi feita refém
muitos gritam, outros calam
e eu estou desesperado
sem saber como fugir daqui

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Contaminação

era para ser um bálsamo
e foi uma facada
era para ser de riso
e foi de lágrima
deixei minha arma no carro
para não matar ninguém
quem sabe se possa reverter:
era para ser uma facada
e foi um bálsamo
era para ser só corte e corpo
e foi de alma