quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

O ciclista noturno

                                                       Henri Toulouse-Lautrec               

Está escuro na bicicleta veloz
E chove, chove, chove uma alegria
sobre o corpo, sobre o sangue
sobre o espanto do peito acelerado
contra o vento
E se quebram contra o calçamento
mentiras e reis
Granizo que se desfaz na travessia

Veias de vidro trincadas pela luz
que escoa dos postes da rua

Caminho, ciclovia,
rota iluminada
por pequenas e úmidas luas

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

O poema de Laura

                                                           Gustav Klimt


Essa moça que amei
na tarde fria
não a amo mais

Aos poucos
estou esquecendo seu rosto,
suas formas, seu modo obsceno
de gritar meu nome em meio ao gozo

Estou esquecendo suas mãos, seus gestos,
seu modo de fugir, sua alegria.
A cada dia que passa
eu a esqueço mais
como se ainda fosse amor o que sentisse

Estou esquecendo as águas
onde a vi banhar-se
esqueço as vestes claras, a trança úmida,
e os pequenos defeitos de seu corpo

Se me perguntarem se era feia ou bonita,
não sei, não lembro
tampouco sei dizer se ela era triste

Mas às vezes vinha pela tarde
feito um anjo sem abrigo
e meu amor mordia suas asas

Assim, ferida, ela ficava
presa sob meus cuidados
imune à ira dos deuses e do tempo

Mas me escapou um dia
Ah, essa moça que amei na tarde fria...

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Escudo de Aquiles

                                  "Sou eu, uma ardente confusão de estrela e musgo."
                                                     Herberto Helder

Transcorrem estrelas nessa boca
banham-se nessa aura
expulsam o que antes
era treva adensada nesses olhos
É um céu se acendendo sobre as águas

Vulnerado estás, asseteado, ferido
Ternura e força, porém,
cobrem essas tristezas de ambrosia

E mesmo sendo feito de poeira, estrada, terra ,espanto
escuridão espessa e nuvens claras,
há lutas, batalhas, bodas e alegrias
lanças, taças e festas
no teu escudo celebradas

domingo, 27 de novembro de 2011

As perdas

                                                       Hamilton, James. 1871
                                  

Perdi o jogo de novo
o vencedor me acena vitorioso
rindo de meus gestos fracassados

Com a crueldade de todos os vencedores
ele me entrega um xadrez de pedra
estilhaçado
e alegria de rainha que eu tinha
as torres os bispos os cavalos
estão caindo a galope dos meus braços

sábado, 19 de novembro de 2011

Noturno sobre ponte na Baía de Guanabara

Eu ofereço
esse gosto pela forte chuva nas estradas
Naves, guindastes,
o ferro úmido de todas as coisas
que compõem a paisagem
Ofereço minha pele febril
minha estratégia de vida
Esse pequeno dilúvio
essas águas que vejo inundando tudo
Os mistérios todos à frente
dos faróis do automóvel
O sereno pacto de fazer parte do tráfego
entre grandes cidades
Ofereço a conversão desse desassossego
em trilhas iluminadas

sábado, 29 de outubro de 2011

Lira de Eurídice

Vem de dentro de mim
uma música
atravessando estradas, campos, lares

Quem pode cobrir de cinza
essa lira que arde?

Vem de dentro de mim
uma música
esbarrando em pedras
soterrando portas
destravando cidades

Dentro de mim
uma música
acesa
invade mares, rios, vales

Quem lhe ousa dar margens?

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Herança

ArtRua,Rio 2011
                  

Ninguém sabe como reluz
teu silêncio sobre minha pele
sobre as asas ásperas
que arrasto pela rua

Mas quando falas
toda medida e ritmo que não tenho
mobiliam a sala
consertam minhas veias
inchadas pela chuva
trazem um ar sereno
à minha sede

Sou ainda aquela menina
levada pelo vento
num tempo em que eras o rei
e o senhor do mundo

E mesmo que estejas perdendo
todos os poderes
ainda sou filha de cada gesto seu
cada porto que encontraste pela vida
é também o meu

domingo, 16 de outubro de 2011

Poema do lobo do mar

Como proteger-me desse lobo que vem vindo
Em que ilhas poderei me ocultar
em que barcos ousarei fugir
desse lobo que domina os barcos e as ilhas?

Reúno roupas negras  faca  escudo
De que adianta enfrentá-lo do meu jeito
se ele me despe do jeito que ele quer?

Como proteger-me dessas ondas
de prazer que ele traz em suas brisas
De que vale feri-lo com meus versos
De que vale me lançar ao mar

Se não há como esconder-me de mim mesma
do exílio que sinto quando fujo
da vontade que tenho de ficar?

sábado, 15 de outubro de 2011

Valquíria

Romã Fernandes (gravura)

Tua alegria está rondando meus mistérios
na penumbra em que estamos
escuto teus passos docemente

Pisas sonhos escuros
vences os fogos noturnos
e um pai te desafia com uma lança

Finjo que estou ferida, adormecida
aguardo que ouses tocar-me e que me acordes

Para que eu possa cavalgar
dentro da tua vida

sábado, 8 de outubro de 2011

A voz da noite sem trégua

Não mais o vapor dos navios
nem o container guardando um piano
nem o cômodo cheio de assombros
nem voos, nem bondes
nem vagões empestados de abelhas

Azulejos ornados de rosas
agora protegeriam, enfim,
a vida que se leva e lava
e se estende no varal

Gestos pousariam sobre xícaras delicadas
e ferrolhos rangeriam quietos

Mas não há sossego nos canos, nos registros hidráulicos,
nas caixas d'água
Os insetos e os fios elétricos insistem na estranheza

A voz da noite está por toda parte

Não mais o vapor dos navios
nem vagões empestados de abelhas
nem mesmo crimes, nem mesmo tréguas

As paixões não dizem onde moram
nem quando chegam
nem sabemos que forma assumem
nem como ardem

A vendedora de açaí




Mais uma sandália se partiu
na ida à feira para comprar caquis

retornas segurando uma penca de bananas
e a sandália quebrada na outra mão
o  pé no chão
torto anjo de Drummond
descalça parceira de Carlito

e mesmo assim desajeitada
tens ventania bastante para o dia

os feirantes estão lá a postos
tentadores
mas flertas é com o brilho súbito
da risonha vendedora de açaí

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

No salão de beleza

Não satisfeita em acolher sozinha sua dor
ela despejava com luz a dor nos outros
ferindo-os nos calcanhares, nos pulsos, nos joelhos
em vão se corria aos salões onde se tratam e pintam
mãos delicadas
em vão se escovavam os cabelos
inútil arrancar com cera e pinça
o excesso de pelos
Era soturna a dor, viscosa, escura
mas se servia com chá para os desavisados
que, diante da inofensiva senhora,
tombavam envenenados

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Luísa

Não sou precisa
nem sólida ou líquida
Sou matéria que hesita
entre muitas feridas
Não sou precisa
não tenho fórmula
não me equaciono
não tenho lógica,
meu caro,
lamento
não tenho siso nem senso
e ando vestida de vento

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Bilhetinho

Quando eu morrer,
mesmo em tristeza devastada,
morrerei da alegria de terem sido possíveis:
o amor, a tristeza e a aventura de ser carne
em meio a tantas pedras

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Calipso

Luís Phillipe. ArtRio,2011


Quando voltavas à tua casa
era de mim que partias
eram minhas as ventanias

Invoquei tormentas
potestades marinhas
qualquer coisa para quebrar teu rumo

Mas uma frágil canoa
foi mais forte

Eu conhecia feitiço, gozo, beleza

Nada que impedisse
um homem de um regresso

Virei uma ilha, estilha, estame
uma fêmea estéril entre as ondas

E nem sabia como ser errante
para encontrar uma pátria
para inventar um porto
onde enterrar tua perda

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Retratos dos ancestrais

Não idolatro rostos que abandonam
Deixarei que partam
Encherei um navio de emigrantes
os que negaram, os que fugiram
os que sufocaram e calaram

Todos, todos convocados
para o navio fantasma
Todos, todos vão embora

Velhos desde o império
Gordos homens sobre cavalos
e mulheres muito tristes

Odeio loucamente essa parede
onde eles jazem
Muros contra minha liberdade

domingo, 21 de agosto de 2011

Invasão ibérica

A Espanha e seus campos de girassóis
suas oliveiras, seus rios
seus árabes e catedrais
aportaram em mim e te querem

Todas as forças de sua arquitetura
suas casas mediterrâneas, suas torres medievais
as touradas sangrentas de Sevilha
os ciganos incríveis de Granada

Por todo lado essa prece:
O meu amor é esse país inteiro te esperando

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Burka

Cecília Costa, ArtRio/2011

Essa estrangeira sem nome, sem rosto, sem riso
disfarça, mas me olha, de dentro do seu abismo
Ela viaja comigo: sombra calada, monja
meio fantasma, meio ferida
Sobrevivente de nada, queimada, ardida
Sob véus calcada, sob véus contida
Me prendendo também
em sua cripta

domingo, 31 de julho de 2011

Telha enquanto cabelo

Oráculo

O pássaro no seu voo encontrará o infortúnio
Será ferido por um raio
seu coração de ave trespassado
por setas de ilusão e de beleza
Querendo o temível
e o transgressivo
o pássaro assim tão desmedido
poderá espatifar-se no rochedo
ou despencar no mar
atordoado
no voo proibido do desejo

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Canção de brisa e espanto

Ninguém conseguiu segurar tua vida,
menina vestida de bailarina.
Desenhos fortes nos olhos
Cabelos pretos demais,
erguidos para o alto,
góticos.
Nenhuma mão nem voz humana
conseguiu reter tuas canções
de brisa e espanto.
E não gostavas do odor dos peixes mortos
e estavas a esquecer as letras dos teus blues.
Não querias que fosse exatamente assim
mas era.
Era teu retorno de Saturno:
Te encantaste.
E seduzida pelo teu encanto,
eu canto

quinta-feira, 21 de julho de 2011

O chão pensa

Arthur Bispo do Rosário

( Poema dedicado a João Marcelino)

Me prendam que estou
me transformando
em rei em verso em canto
Que venham as virgens em cardumes
Que venham moinhos e gigantes
Por onde passo as coisas
hesitam por seus nomes
tal a minha fúria
Vestem-me de louco
mas sou apenas
um arquiteto de retalhos

Enquanto outros acendem
lampiões estradas pontes
acendo reinos dulcinéias cartas
Bordo delírios em panos
De tudo que acho perdido
teço um manto e um sonho
Chamam-me de louco
Que venham as virgens em cardumes
Sou apenas
um arquiteto de miragens

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Sala de visitas

Essas fotografias esticadas com zelo
atadas umas às outras
na banca de revistas
ou penduradas com pregos em nossa casa
são máscaras, fios, arcas
paredes descascadas
onde buscamos espelhos, marcas
rochedos onde aninhar as águias

E como todos posam assim sempre sorrindo
tem-se a impressão
falsa e às vezes quase intacta
de que ninguém está feroz nem triste
e de que nesse reino de retratos
não há mágoas

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Grafite

Banksy

Preciso cobrir com gestos essas ruas
pintar, escavar, tornear
abrandar as paredes do meu jeito
Preciso dizer-lhes algo
assaltá-las
transformar o que sobra
traduzir as sombras em desejos

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Ariadne

I

Foi exatamente isso que ela fez
Fugiu com o trapezista do circo
Largou terras, pratarias,
todos os bens da família
todos os deveres leais
Por isso agora vive numa tenda
e é errante, fumante, amante
pobre, pobre, pobre de marré, marré marré
e rica, rica, rica de muitas marés

Mas quem te ancora, mulher,
quando o vendaval vem solto sobre as águas?
Quem pode te proteger?
Foi nisso que deu
Quem mandou fugir com o trapezista de circo, menina?

E a moça fugitiva canta tentando esquecer:
Eu sou pobre, pobre, pobre de marré, marré, marré
e sou rica, rica, rica de muitas marés

II
Mas quem disse que o trapezista de circo
queria mesmo essa moça de família, seda e mimos?
Quem disse que não era mais uma forma de poder?
De querer vencer os ares e desafiar os lares?
Exibi-la pelos bares
como conquista circense
bicho doméstico domado
pela força de mil artes?

Que será dessa mocinha na mão desse saltimbanco?
Será que será trapezista
ou lavará o chão que ele pisa?

O restante dessa estória
só o destino vai dizer

III

Alguém por aí versado em mitologia
pode até dar um palpite:
Talvez seja um destino de Ariadne,
largada por Teseu,
resgatada por Dioniso...

Mas pode ser que não seja
e para dizer a verdade
talvez essa Ariadne
não queira nem circo, nem pátria
talvez ela mesma se salve
Isso só o diabo sabe

sexta-feira, 1 de julho de 2011

A musa

Uma predisposição musical
antecede em mim a palavra poética.

Schiller

Posso ouvi-la com voz de demônio ou deusa
em canções de desespero ou leve melancolia
Posso ouvi-la do alambrado das casas
da zona portuária ou de montanhas bem altas

Ouso guardá-la em meu desassossego
dentro dos espelhos
no que restou nos cinzeiros
dos amores que tive e queimei

Meus pulmões em brasa precisam do seu ar
Só por ela respiro
por ela entro nas águas
Fico boa de tudo e nunca mais vou tossir

Por ela invento bruxedos
Faço fogo, amor e guerra
Largo todos os meus vícios
Troco todos os meus reinos

terça-feira, 28 de junho de 2011

Morro da Conceição

Travessa do Sereno
Rua do Jogo da Bola
São Francisco da Prainha

Esses nomes me queimam
Rumor que amanhece cedo
e nunca deixa de arder

Os nomes das padarias,
mercearias, lavanderias
Nomes dos becos e pretos

Estrelas que avançam soltas
contra minha boca

Casas apinhadas
onde as mulheres oxigenadas
cercam a estátua de Camões

E a língua lusitana,
no doce gozo da tarde brasileira,
não deixa mais nada doer

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Chicletes de hortelã

Um porto faiscando em teus cabelos
Tua alegria inteira vindo para mim
mascando chicletes de hortelã

Com o céu da boca estrelado
me feres, me cuidas, me envenenas
e o cheiro forte que incensas
incendeia tudo e parte

Mas me voltas como mulher
mais uma vez
Terna música que escuto
Ritmo, verso, foice
com que arranco raízes
e canto

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Beatriz

Como se me preparasse para a festa
te aguardo
Não há lugar nem dia para nosso encontro
feito só de ilusão e maresia

Te espero e me apareces de súbito
retornando de uma viagem
trazendo todos os gozos
de que me poupaste

Minha ternura se abre para tocar-te
Janela aberta às aragens
Um jeito só meu de dizer sim

E há tanto riso na tua miragem
Tanta beleza sitiando a tarde
que até parece que voltaste de verdade

terça-feira, 21 de junho de 2011

Venditas

Damien Hirst



Aceito que me cubras
com palavras transparentes
É uma forma de cura

Aceito que resplandeças
com teus fogos de artifício
tua letra bem miúda
tua voz de professora

Aceito que me enganes
cada vez que escreves cartas
nesse tempo sem carteiros, sem telegramas
sem nada

Aceito que venhas por mera telepatia
minha intensa musa clara

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Ao pé do muro

E além do mais, eu também tenho
uma banda bichada onde um veneno fino
se destila
E essa outra banda que me salva
Pedra não é
e ao perecimento se castiga
Fruta no sereno
uma parte sã, outra perdida
O que me bicha e lixa e come seco
é o que em silêncio me espanta sem que eu saiba
Pode um bico de pássaro reter o meu destino
com a doçura própria de seu timbre
Posso secar ao sol com a casca empretecida
uma banda sã, outra maldita
Mundo, mundo, vasto mundo, estou aqui dividida
e nem rima nem solução seria
se eu me chamasse Aparecida
http://anonimundo.blogspot.com/

domingo, 19 de junho de 2011

Mênstruos

Modigliani


Os lençóis estão limpos
apesar dos meus mênstruos
posso chorar sobre eles
as minhas lágrimas limpas

Meus seios estão sãos
sem formações malignas
meu útero não tem feridas
Os anjos disseram que não vou ter filhos
eu que sou serva da vida

Os lençóis estão limpos
eu também estou limpa
até às tripas
Uma mulher do mundo tinha fluxos ininterruptos
tocou o vestido de Cristo e ficou sã

Eu estou sã como ela
cheia de desígnios e digna
o vinho fluindo quente
pelos lábios do sexo
a vida vil e ferida

Os lençóis estão limpos
apesar dos meus mênstruos
as lágrimas e a saliva límpidas
a noite enraizada na beleza
apesar da cólica e do sangue que me molha

sábado, 18 de junho de 2011

Poema para Pedro, o muito

"Muchacha en la ventana" Salvador Dalí,1925





Por tanto tempo amei Pedro
que já o deixara há anos
e ainda era cedo
e não havia mais jeito
e no entanto eu amava
como uma espécie de bicho que aguarda
como uma espécie de massa descansando

E Pedro era Pedro e muitos
não era um só
mas todos que eu ia amando pelo mundo
Em cada um era Pedro
em cada Pedro um segundo
mil e único
Vento estúpido, vento estúpido,
por que me fizeste uma só para um homem múltiplo?
Por que de mim não fizeste também tantas Marias
por tantos Pedros pecada
por tantos Pedros navegada?
Ao invés me deixaste só
sendo só uma e mais nada
Quando no fundo eu queria
ser as outras Marias
que Pedro também amava
e ser as outras mulheres com quem Pedro deitava
Vento estúpido, deus do múltiplo,
tu não me deste esta dádiva

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Clítia

Estou atada a um destino
como a um rochedo
Por séculos serei um girassol
acorrentado à luz

Amigo Prometeu, tu que roubaste
o fogo dos deuses para colocá-lo
no coração dos homens,
liberta agora meus olhos dessa escravidão

Preciso curar-me, amigo,
dessa claridade
Quero sombras para drenar
essa luz que não me dá sossego
Ensina-me um jeito de abrandar
o fogo e de expulsá-lo

Preciso de trevas para o meu desejo

domingo, 5 de junho de 2011

Canção da inveja

Invejo a paz dos homens nos aeroportos
Os comissários fardados rumando para o embarque
Invejo os condomínios fechados
os apartamentos bem decorados
as casas de muro alto
com seus cães de guarda
Invejo todas as coisas normais
que a toda hora sucedem
e todos os loucos breves
e as viúvas sadias com seus netos
Sinto inveja dos animais domésticos
e dos filhos que se despedem
e seguem pra escola
E por último dei para ter inveja
dos quartos bem arrumados
dos banheiros limpos
das cozinhas azulejadas e dos eletrodomésticos
E como se não bastasse
eu que sou devastado
e a tudo devasto com minha lava
invejo meus próprios versos
e a paz daqueles que os lêem
em suas casas
nos seus apês apertados
nas suas varandas amplas
nos seus sanitários brancos
nas suas invejas leves

Brasas

"La bruja", de Cildo Meireles


Há um desejo de chuva sobre brasas
e o invasor finalmente deixou esse país
Desejo de guardar as armas
e arrumar a casa
limpar armários, trancar arcas

A matéria escura dos meus cabelos
vai descendo com o vestido até os pés

Uma monja vai nascendo de mim
blindada sob véus e espadas

Ninguém se atreva a perturbar
esse silêncio de milênios
Ninguém ouse uma palavra
contra essa escuridão

Sou um submarino inacessível
sob muitas águas

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Cidade submersa

Uma cidade submersa
amores submersos
uma luz marinha guiando
minha busca

o musgo tomou conta
das casas naufragadas

Entre polvos e arraias
nado e sonho
com a cidade que perdi

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Semente

A noite desce sobre mim
e me expele violentamente
não para um mundo de senhores calmos
não para pedras e cordeiros apascentados
mas para saltos rituais macabros
fortes gritos de mulher
partos gozos

A noite me atravessa
me arremessa,draga
enquanto uma delicada fera
me toma pelas mãos
para uma valsa

domingo, 1 de maio de 2011

O pedido da fonte

Se sabes que sou uma fonte
bebe logo dessa água

Tenho sede que me bebas
tenho sede que me leves

Na taça da tua boca
nos rumos da tua vida

sexta-feira, 22 de abril de 2011

O Horto

Juazeiro, Juazeiro,
o peso de tanta gente
vou levando na ladeira
Imagens estilhaçadas
cacos de virgens Marias
santos decapitados
braços e pernas de gesso
corações de cera
estilhaços de uma guerra
Mulheres vestidas de preto
dentro de mim vou levando
cruzes pesadas, romeiros
e uma capela de Santa Clara
acesa dentro do peito

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Medusa

Deslizo entre tuas mãos
como um barco noturno
entre ilhas

Te apareço em sonhos
sangrando como uma ninfa
Na sombra do esquecimento
em que me alojaste
tornei-me um bicho que vive

Uma luz esquisita emana
de meus cabelos e te atormenta

Ofereço serpentes
e te assusto

Espelho o medo que sentes
do que não podes tocar
do que não podes possuir
do que a vida é pequena demais
para alcançar

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Tear

Luta contra o silêncio
são os tecidos que vestes
o murmúrio dos teus passos
o taconeado dos sapatos

Luta contra a treva
são teus acenos, teu jeito ameno
de tomar chá à tarde

O passeio à padaria
onde buscas o pão
para mais um dia

em que iluminas
o mundo que pisas

sábado, 26 de março de 2011

Dioniso diante de Apolo

Agora que acalmaste meu tornado
e que aceitei tua flecha
sobre a minha carne

Agora que me fecundaste com a medida
e que me deste margens
Agora que pousaste a mão
sobre o meu medo

Vês como as palavras nascem de mim
pausadas
e como tornei-me brisa
ateada sobre o pranto?

Desde que me concedeste tua máscara,
deus solar,
a noite que eu trazia
perdeu o gume terrível

Vem, amigo, vem ver
como, mesmo diante do sangue,
tornamos bela
a dor para esses gregos

terça-feira, 8 de março de 2011

Oração

Agradeço esse dia e todas as suas sombras
e o que me tocou como foice
e a face delicada que mostrei

Agradeço esse dia e todas as suas marcas
e o que ficou na encosta e o que restou nos olhos

Agradeço essa febre
o riso que espelhei sobre as águas
a beleza que busquei
e a vida que desejei com tanta força

domingo, 6 de março de 2011

Lance de dardos

Como se fossem de mármore
os dardos duram dentro de mim
perfeitos
E aprendi com eles a lançar-me
e aprendi com eles a ter medo
a me esconder dos nomes
fugir das luzes fortes
e da insensatez dos automóveis
Aprendi com os dardos
uma espécie de vida iluminada
uma sutileza para arremessos
estratégias de ataque
fugas
um modo impecável de me abrigar da chuva
E aprendi também uma crueldade
e uma coragem toda feita de começos

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Penélope



Se me chegasses no fim desta tarde
eu queria ser outra
não essa estranha que sou em meio à chuva

Se me pudesses ver no fim da tarde
eu fugiria
com medo que minha tristeza te assustasse

Se soubesses o que passo
eu diria: não é verdade

Iria encontrar um jeito de enganar-te
e disfarçar-me

Mas jamais, jamais
deixaria que me visses
sem que a fascinação me abençoasse

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Anúncio de Antiquário

Aceito toda forma de dor
Guardo os cacos, os fracassos
Coleciono toda espécie de trapo
baús, lustres, quadros
bibelôs despedaçados

Até navios desaparecidos
guardo

Aceito cores de todos os retalhos
todas as roupas vividas
chapéus de gente antiga
relógios, violas, rádios

E os desejos perdidos
debaixo dos guarda-chuvas
risos que ficaram presos
dentro dos portarretratos

Aceito o que foi pisado
mutilado, abandonado
Aceito, como um oceano,
toda forma de naufrágio

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Canção da mulher que virou barco

Transgrido tantas leis
que já nem sinto
Entro em um mar de águas-vivas
que ardem, ardem, ardem
mas nem doem
parece que me alisam
com seus pelos frágeis

Cada vez me afoito mais
e não encontro margens
e não encontro porto
só encontro tempestades
onde atracar

Nesse excesso de sal
nesse mar escuro em que me perco
me iluminas com o teu desejo
me serves de farol quando anoiteço
e me guias me guias me guias
jorrando tua luz
sobre meus seios

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

O Chafariz

Parece que saí de algum sonho, de alguma caverna
de algum lugar inóspito e aquecido
Imobilizado feito os corpos de Pompeia
virei uma estátua de cinza

Sou uma miragem entre os edifícios
mas tenho a realidade dos fantasmas
a errância dos bardos
a necessidade dos mendigos

Minha imobilidade é um artifício

A todo tempo oscilo
entre a inércia do meu corpo
e a fluidez do rio que abrigo

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Pequeno ensaio sobre dobras

                                                                    " Mulher é desdobrável, eu sou."
                                                                          Adélia Prado


Não mexo mais em feridas
Quero as dobras
das ondas, dos panos, dos calcários

Deixo lençóis fechados  no armário
Em vez de armas e espinhos,
guardei as dobras nos jarros

Em vez de farpas guerreiras,
desdobramentos delicados
transbordam por todos os lados                  




Poema publicado no livro " Um olhar para os detalhes". Org.da poeta e professora Maria Dolores Wanderley. Rio de Janeiro: Editora Interciência e Petrobras, 2010.p 67                                                  

O afogado

As mãos apertadas
os lábios roxos
o corpo declinando aos poucos

Agora um lago imenso me aguarda
e rogo aos deuses dessas águas
que não me deixem perder
o intenso encanto dos funâmbulos e das fadas

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Destino

Matei o gato, mamãe, matei o gato
mas o gato, mamãe, não morreu
passou o resto da vida
atravessando a sala
ensanguentado
Dona Chica não se espantou
e disse em tom muito sábio:
Esse bicho, Marília, não morre nunca
ou você foge ou finge suportá-lo

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Diana

Ele sabe os tons de esmalte que ela usa
os brincos e joias que ela tem
brincos de ouro fosco e círios raros
colar amarelo fervido em pérolas

Ele sabe por onde ela prende seus cabelos
escritos em todas as partes
Cabelos mais longos que as folhas da palmeira
longa cabeleira, juízo curto

Mas ela curte tanto ter juízo
curte os cabelos curtos dos homens que ama
curte paixões que alucinam
as paixões que fogem e voltam

Sacerdotisa de Tupã
abençoa tudo com licor
Lábios de mel para esse mundo às vezes sem cores e tão cru

Ele sabe os tons de esmalte que ela usa
por onde ela acende suas chamas
e os medos e coragens que ela tem

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Vestidos

Os vestidos eram longos demais
estendidos no presídio
impossíveis, altos, inatingíveis
encasulados nas janelas do edifício
nunca os alcançaria

Mas o sol, esse sim, visível, possível,
estende seu reino
Luz que atinge os ossos, os pulmões, as veias
Clareza através da qual tudo se lava:
ruas, risos, palavras

sábado, 22 de janeiro de 2011

Dr. Fausto

                                            " Filosofia, leis e medicina
                                              Tudo, tudo estudei com vivo empenho!  
                                               Mas conheço que nada nós sabemos!
                                              (...)Por isso me entreguei todo à magia..."
                               Fausto, Goethe

Enigma que tento adivinhar com meu nariz e tranças
Vejo frascos de tinta sobre os livros
Sinto o cheiro do fogo
e a polidez dos seus gestos contra minha histeria

Meu desejo: nuvens fortes, temporais,
sandálias muito frágeis
para pisar esse chão de chumbo

Tento o equilíbrio da fantasia
contra essa realidade fria

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Estação

Grama que nasce em ferrovias que já terminaram
entre os trilhos e os dormentes
meu uivo instalo
Penso em trens grávidos de grãos
sitiando minha casa
Vidraças e cortinas se abrindo
para que eu possa envolvê-los
com minha força e dança
com minhas finas mãos

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Morro da Forca

Minha coragem me deixará leve
suspenso entre olhares abismados

Pela última vez ouço o vento
Basta uma corda, basta um salto

E nunca mais as igrejas
e nunca mais essas ruas
e nunca mais a volúpia do sol
sobre minha carne

Talvez seja só um exílio
uma leveza erguida sobre as pedras
um modo desconhecido de ser pássaro

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Um canto de sereia

Ulisses e as sereias




Me pergunto com que roupas e sandálias
chego até você
incendiada pelos seus navios

As ondas do meu desejo nos sustentam
espalhadas e espelhadas
em cada fio dos meus cabelos

Demônio do mar,
sem medo da canção das deusas,
Guerreiro dos cabelos cor de sol

Como enfrentar seu gosto pelos vícios
pelo jogo astucioso do combate
Vencedor de Troia, como eu poderia me perder?

Não adiantam os feitiços, nem os luxos,
nem os lixos onde atiro o que sobra
da abundância dos meus pelos,
das minhas unhas, dos meus beijos

Me pergunto com que roupas e sandálias
chego até você
Demônio de Troia,
Como poderei vencer?

Carta para Elizabeth Bishop



Há fantasmas, sim, cercando a casa
e bichos mortos e cães furiosos
Mas há também bons espíritos
aterrando o medo
e o desejo louco de viver feliz
numa cidade noturna acesa contra tudo

sábado, 15 de janeiro de 2011

Treliças

Acabei o namoro com teus olhos
O que esperar da luz entre treliças?
Chove a cântaros em Vila Rica
e a janela está fechada há séculos

De que adianta te encontrar nas ruas?
Terminei o namoro com tua alma
Cortei as cordas dessa lira

Havia pássaros entre nós dois
segredos escorriam sem paz
pelas águas perdidas

Mas agora há sossego afastando nossas vidas
Chove, chove a cântaros em Vila Rica
e nunca mais molharemos os sonhos
na mesma bica

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Penas de uma casa em cinzas

" Traga-me um copo d'água, tenho sede."
              Gilberto Gil



É óbvio que anoiteceu
está registrado em fotos
em minas, em mapas
Não posso trazer de volta o passado
imitando a voz dos mortos
Não posso devolver sua mãe,
sua filha, sua falta
O que há por dentro são gambiarras
madeiras úmidas, telhas e vidraças quebradas
A vida gotejando no balde
e a caixa de amianto vazia
de onde espero toda água possível
para o chão limpo e claro que preciso

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Leda e o cisne

Fernando Botero




Desisti de esperar teus signos macios
a mansidão com que amparas
as quedas sem remédios

Desisti de querer te afrontar
de usar vestidos para te iludir

Agora uso essa túnica simples
os cabelos quietos
a forma mais exata e comum

Ousadia seria esperar que me ferisses
e me espetasses os olhos com teus dramas
e me convidasses a dormir em tuas chamas

domingo, 9 de janeiro de 2011

A fuga de Io



                                                         para Linda Nemer


Eu vinha tonta de mar
e desaguei aqui
entre varandas estreitas
e pontes de suicidas
Cheguei depois do ouro dos poetas
Bebo no cano de ferro do chafariz
Vim para amar o que ficou
sabendo que são restos
Eu vinha encandeada pelo sol
e desaguei aqui
porque a dor não escolhe
a escuridão com que vai se cobrir

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Lorena no século XIX

O professor amava Lorena
tão rítmica  graciosa
O lampião se acendia junto às paredes antigas
e iluminado o latim se oferecia às línguas
mas fugia o latim, esse danado,
desertava da vida quando olhos
de mestre e aluna se encontravam

Houve latim algum dia? pensava o professor.
Não, nunca houve
Inventei essa língua só para amar Lorena
É a minha ponte para seus olhos