sábado, 29 de outubro de 2011

Lira de Eurídice

Vem de dentro de mim
uma música
atravessando estradas, campos, lares

Quem pode cobrir de cinza
essa lira que arde?

Vem de dentro de mim
uma música
esbarrando em pedras
soterrando portas
destravando cidades

Dentro de mim
uma música
acesa
invade mares, rios, vales

Quem lhe ousa dar margens?

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Herança

ArtRua,Rio 2011
                  

Ninguém sabe como reluz
teu silêncio sobre minha pele
sobre as asas ásperas
que arrasto pela rua

Mas quando falas
toda medida e ritmo que não tenho
mobiliam a sala
consertam minhas veias
inchadas pela chuva
trazem um ar sereno
à minha sede

Sou ainda aquela menina
levada pelo vento
num tempo em que eras o rei
e o senhor do mundo

E mesmo que estejas perdendo
todos os poderes
ainda sou filha de cada gesto seu
cada porto que encontraste pela vida
é também o meu

domingo, 16 de outubro de 2011

Poema do lobo do mar

Como proteger-me desse lobo que vem vindo
Em que ilhas poderei me ocultar
em que barcos ousarei fugir
desse lobo que domina os barcos e as ilhas?

Reúno roupas negras  faca  escudo
De que adianta enfrentá-lo do meu jeito
se ele me despe do jeito que ele quer?

Como proteger-me dessas ondas
de prazer que ele traz em suas brisas
De que vale feri-lo com meus versos
De que vale me lançar ao mar

Se não há como esconder-me de mim mesma
do exílio que sinto quando fujo
da vontade que tenho de ficar?

sábado, 15 de outubro de 2011

Valquíria

Romã Fernandes (gravura)

Tua alegria está rondando meus mistérios
na penumbra em que estamos
escuto teus passos docemente

Pisas sonhos escuros
vences os fogos noturnos
e um pai te desafia com uma lança

Finjo que estou ferida, adormecida
aguardo que ouses tocar-me e que me acordes

Para que eu possa cavalgar
dentro da tua vida

sábado, 8 de outubro de 2011

A voz da noite sem trégua

Não mais o vapor dos navios
nem o container guardando um piano
nem o cômodo cheio de assombros
nem voos, nem bondes
nem vagões empestados de abelhas

Azulejos ornados de rosas
agora protegeriam, enfim,
a vida que se leva e lava
e se estende no varal

Gestos pousariam sobre xícaras delicadas
e ferrolhos rangeriam quietos

Mas não há sossego nos canos, nos registros hidráulicos,
nas caixas d'água
Os insetos e os fios elétricos insistem na estranheza

A voz da noite está por toda parte

Não mais o vapor dos navios
nem vagões empestados de abelhas
nem mesmo crimes, nem mesmo tréguas

As paixões não dizem onde moram
nem quando chegam
nem sabemos que forma assumem
nem como ardem

A vendedora de açaí




Mais uma sandália se partiu
na ida à feira para comprar caquis

retornas segurando uma penca de bananas
e a sandália quebrada na outra mão
o  pé no chão
torto anjo de Drummond
descalça parceira de Carlito

e mesmo assim desajeitada
tens ventania bastante para o dia

os feirantes estão lá a postos
tentadores
mas flertas é com o brilho súbito
da risonha vendedora de açaí

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

No salão de beleza

Não satisfeita em acolher sozinha sua dor
ela despejava com luz a dor nos outros
ferindo-os nos calcanhares, nos pulsos, nos joelhos
em vão se corria aos salões onde se tratam e pintam
mãos delicadas
em vão se escovavam os cabelos
inútil arrancar com cera e pinça
o excesso de pelos
Era soturna a dor, viscosa, escura
mas se servia com chá para os desavisados
que, diante da inofensiva senhora,
tombavam envenenados

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Luísa

Não sou precisa
nem sólida ou líquida
Sou matéria que hesita
entre muitas feridas
Não sou precisa
não tenho fórmula
não me equaciono
não tenho lógica,
meu caro,
lamento
não tenho siso nem senso
e ando vestida de vento

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Bilhetinho

Quando eu morrer,
mesmo em tristeza devastada,
morrerei da alegria de terem sido possíveis:
o amor, a tristeza e a aventura de ser carne
em meio a tantas pedras