quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Grito

Não sou invisível
sou uma possibilidade de amor ambulante
caindo meio desastrada
na escada rolante

sábado, 5 de dezembro de 2015

Lira de Eurídice

Vem de dentro de mim
uma música
atravessando estradas, campos, lares

Quem pode cobrir de cinza
essa lira que arde?

Vem de dentro de mim
uma música
esbarrando em pedras
soterrando portas
destravando cidades

Dentro de mim
uma música
acesa
invade mares, rios, vales

Quem lhe ousa dar margens?

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Dezembro


Mulher, mulher
não vê que eu tô na paz
vamos sambar um pouquinho
vamos descer comigo
solta esse cabelo, põe uma flor
pegamos o teleférico e depois o metrô
Chama a galera toda 
todo mundo no liquidificador 
Vamos sambar na praça São Salvador
quem sabe a gente se salva
com o samba na causa

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Poema do Amor Imperfeito

Desse delírio tenho medo
desse delírio que ama e sonha
e me espera atrás do beco
e me ataca pelas costas
e se vinga do meu medo

Desse sonho, dessa viagem,
do nosso amor
tenho medo
quando ele vem sorrateiro
quando atravessa os bueiros
e me pega de surpresa
e me enterra um dardo
no peito

Do seu perdão tenho medo
desse perdão que liberta
e fere mais que a ofensa
e dói muito mais do que ódio

E mesmo com tudo isso
o amor amanhece refeito
nunca, nunca um amor perfeito
mas doído, trucidado
feito de carne e verdade

feito de estranha voragem
quase de cinzas composto
Brasas queimaram meu rosto
mas eu volto livre e amada
com cicatrizes guardadas

Vou voltando, meu amado,
ao nosso amor imperfeito
O que poderia, nesse mundo,
roubar-me a sua beleza?

Nem as feras, nem o bruxos
nem os circos enfeitiçados
nem os meninos mais tristes
nem o fado inexorável

Nem trapezistas ou mágicos
nem a morte, meu amado,
nem os saltos, nem as quedas
nem as fugas mais abertas
nada disso me atormenta

Quero o nosso amor a salvo
mesmo que sejam vorazes
os deuses que ousam matá-lo

Quero o nosso amor humano
mesmo que eu tenha medo
mesmo que seja frágil
nosso amor de porcelana

Mesmo que seja estranho
eu me lanço
delicada como uma borboleta
furiosa como uma lâmina

E uma coragem danada
me leva para os seus braços
um tipo de cegueira
uma escuridão quase acesa

Uma ventania dos diabos
vem açoitando meu corpo
cheio de juventude

E em você eu deságuo
sangro a romã dos seus lábios
desembaraço seus cabelos
alongados
beijo seu corpo forte, alto, iluminado

E permito tudo
absolutamente tudo
ao seu lado

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

rústicos

cercas de arame farpado sob a chuva
alegria nas pedras do lajedo e nos alpendres
fogueira mítica acesa entre escritos rupestres
meninos e meninas nus dançando ao redor
coice de cavalo, vela acesa dentro da geladeira a gás,
açudes de água morna, cactos, carroças
estávamos todos lá antes da luz elétrica
preparados para perdas e recomeços

sábado, 14 de novembro de 2015

Noturno sobre ponte na Baía de Guanabara

Eu ofereço
esse gosto pela forte chuva nas estradas
Naves, guindastes,
o ferro úmido de todas as coisas
que compõem a paisagem
Ofereço minha pele febril
minha estratégia de vida
Esse pequeno dilúvio
essas águas que vejo inundando tudo
Os mistérios todos à frente
dos faróis do automóvel
O sereno pacto de fazer parte do tráfego
entre grandes cidades
Ofereço a conversão desse desassossego
em trilhas iluminadas

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Homero

Era missão tua salvar
guerreiros do esquecimento
e depois palavras do abandono
Cantar amores e mortes
com esplendor e encanto

Trouxeste-nos  auroras e deuses
sangue e pranto

E era missão tua
abrandar nossas mágoas
com teus cantos

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Penas de uma casa em cinzas

 Traga-me um copo d'água, tenho sede."
              Gilberto Gil


É óbvio que anoiteceu
está registrado em fotos
em minas, em mapas
Não posso trazer de volta o passado
imitando a voz dos mortos
Não posso devolver sua mãe,
sua filha, sua falta
O que há por dentro são gambiarras
madeiras úmidas, telhas e vidraças quebradas
A vida gotejando no balde
e a caixa de amianto vazia
de onde espero toda água possível
para o chão limpo e claro que preciso

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

O carteiro e a poeta

Não quero deixar de conhecer
Pasárgada, Shangri-lá e Atlântida
ainda bem que daqui de casa
posso ir até lá com asas
ou a nado
vou pela rota contrária
oceano pacífico e feroz
ouço todo dia sua voz
antiga e total
nem preciso de satélite
lá mesmo não preciso chegar
e são tantas cartas, contas, telegramas
há mil anos e séculos
e esperei tanto, tanto, tanto
aqui nesse Rio de Janeiro
que acabei me apaixonando pelo carteiro

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Um pomar no escuro

                                                                 Remedios Varo



                       

                        Marimbondos estalando pelo corpo
                        cacos de vidro verde sobre o muro
                        mínimos guardiões desse desejo
                        de furtar teus frutos
                        e desabotoar essas paredes,
                        calhas, luzes, rochedos
                        que dividem e separam
                        minhas chamas das tuas




quarta-feira, 4 de novembro de 2015

imigrantes

No hemisfério norte
era novembro ainda e ela  disse que ia embora.
Voltaria ao seu país, à sua terra, aos seus navios e barcos
Como quem não quer nada ele perguntou:
Por que não aguarda o  verão?
Ela aguardou:
semanas, meses. anos
Até hoje não decidiram quando é exatamente o verão
nem primavera nem inverno nem outono
nem sul nem norte
nem se existe realmente um país para onde voltar
Desnorteada e sem geografia
respirou
cedeu ao jogo do amigo
toques, massagens, abraços
e tombou inteira em suas mãos

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Poema líquido

beijo com cajuína tão bom quanto café
longe dos palcos e das máscaras
da ostentação das luzes fotográficas
beijo secreto entre as paredes do banheiro
água de chuveiro
fluida, leve, fugaz, sem vínculo, passageira
ninfa
misteriosa e escondida sob longos cabelos
aquáticos e lunáticos
corpo de índia descalça
correndo e nadando pelo mato e pelos rios,
mulher preciosa e calada
muito, muito rara essa minha nova amada

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Bricolage

Somar os retalhos de Luana e Lara
juntar todos os amores
num só: mãe, pai, musa, filho esposa, puta
irmão, irmã e todas as navalhas
uma mulher mais brava
chamou a polícia feminina
e eu me escondi no posto de gasolina
a outra mais calma
me esperou por décadas
cheia de dúvidas e curvas
ainda me olha escusa
e mesmo que eu fuja só
de avião, a cavalo, de barco
e ande  vadiando ao redor do rebanho
de suas companheiras
ela me espera em casa
mãe dos meus filhos
com afagos claros
e eu sem saber dos amantes
que ela inventa , fantasia, esconde e cria
nas arcas, armários e  gavetas
enquanto penso ser o único,
o total, o tal do cara

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Maricá

mais de 40 graus
labaredas altas
na sauna
banho, beijo, vinho e cachaça acalmam
muito mais de 45 degraus
entre lagoas, poças, rios, praias
espinhos, charcos, corais, voo de raias,
e eu  sem lar nesse desassossego alto
tudo claro na escuridão
e eu sem saber onde ensolarar a minha alma

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Resgate

como queria sequestrar você
cativeiro silencioso dentro dessa cidade, sem luxo,
sem imóveis, pensões, hotéis
sem sauna nem piscina,
nem bancos, nem contas, nem afazeres domésticos
sequestrar para dentro de mim
para dentro dos meus versos
onde posso te esconder
anônimo amor cego
segredo velado por meu zelo
guardar-te de tal jeito na bagunça da gaveta
que ninguém poderá ver
como queria sequestrar você
para o caos dos meus cabelos
todos os meus cheiros
para o furor do meu excesso de pelos:
buço, busto, axilas, pernas, novelos

terça-feira, 13 de outubro de 2015

The old and the sea

Aos poucos foi chegando
deixando a escova de dentes
esquecendo o colar naquele
lugar ermo em frente ao mar

Como um gato recém admitido na casa
perambulou por ali, pelos antigos móveis
saltando em cima da mesa, pela máquina de escrever
cheirando a comida feita com tanto gosto
pelo caçador

e foi experimentando seus voos
seu jeito de imperador
sua calma, a maturidade da idade e das perdas

chegou com muito jeito, nada feriu,
nada esmurrou
suavemente caiu nesses braços abertos
de homem aviador
que lhe deu alturas nunca antes vistas
homem-peixe
que lhe trouxe profundidades
nunca mais escavadas

e mergulhou em seus vinhos, seu rum de pirata,
sua barba branca, suas facas e navalhas

Os poemas que não posso fazer para você

Já não posso te escrever
nem cartas, nem bilhetes
nem disfarces dos deuses
nem ouvir os instrumentos que tocas
seu delicioso canto de sereia
atravesso o mar ilhada
cercada por muros e palavras
que nunca mais serão ditas
aprendi esse silêncio
um novo jeito mudo, quieto, apaziguado
entre lembranças e  variadas facas na cozinha
marcas dos seus filmes,
e flautas
marcas do seu canto, das cordas do seu violão,
do teclado, dos tambores, dos seus  humores
com a quietude de bichos silenciosos
fico olhando de longe
e o que já não posso dizer
secretamente escancaro
em tintas de caneta e mágoa

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

O mestre da meia-noite

É à meia-noite que ele canta e toca
os olhos depois do mar
maresia depois da chuva
à meia-noite ele chama
à meia-noite se banha
em águas de vinho tinto
no meio da noite ele acorda
do espanto do dia feroz
entre o rio do canal, entre o piano e o violão
entre o improviso e o imprevisível
à meia-noite,
inesperadamente,
desesperadamente
ele vira música

domingo, 20 de setembro de 2015

O Horto

                                                  Até 27 de setembro.
                                                 Museu da Língua Portuguesa,
                                                 São Paulo.
Juazeiro, Juazeiro,
o peso de tanta gente
vou levando na  ladeira
imagens estilhaçadas
cacos de virgens Marias
santos decapitados
braços e pernas de gesso
corações de cera
partes que foram curadas
estilhaços de uma guerra
mulheres vestidas de preto
dentro de mim vou levando
cruzes pesadas, romeiros
e uma capela de Santa Clara
acesa dentro do peito

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Zarabatanas

Ninguém esperava mais
por esses cabelos imensos
por esses olhos de fera
esse meu ar de arco e flecha
Zarabatanas eu faço
com mãos de índio bravo
ponho o curare na ponta
paraliso os ventos errados
e só atraio belos raios

terça-feira, 5 de maio de 2015

Fragmento do diário de Cosima

Invento cadernos
para entender esse homem
que me cerca

Sou uma criança que ele salvou
dos penhascos
Por gratidão,
tento aquecê-lo com a lã de minha vida
protejo seus segredos
velo seu sono e espero

A partir de agora,
serei a única guadiã de seus mistérios

Ele me convida a caminhar dentro da noite
e me leva pela mão como uma filha

Me finjo amiga, menina, companheira

Alguns anos se cumprirão
e ele nem imagina
o corpo de amante
que vou lhe ofertar sob as estrelas

segunda-feira, 4 de maio de 2015

Leto e a ilha de Delos

Onde andas, Netuno?
não me deixes vagando pelos mares
ancora mu corpo, prende-me
transforma-me em filha tua

Cerca-me com tuas tempestades
com tua boca encantada
nunca deixes de ferir-me
para que eu ande sempre comovida

No meio de tanto sal
dá-me náufragos, arcas
e a nudez certa para enfrentar-te

Dá-me também tuas misérias
e a firmeza com que esperas
e inventas todos os navios

domingo, 3 de maio de 2015

Era

O que um dia foi ternura e canto
resultou em bruma
aquela que foi bela e tua
em pele, em pelo, em carne, em alma
hoje é fantasma
O que era febre e entrega alucinada
hoje mendiga na vidraça

sábado, 14 de março de 2015

Os partos de Zeus

quero a calma desses livros aí na estante
      arrumados, comportados
fingindo que não estão na pândega

mas os cabelos soltos das bacantes
            pelo chão
   a poeirinha não varrida
falam com gosto das tuas filhas

harém de leão com seus filhotes
      com suas leoas ruivas
        lar da pá virada
onde o escritório em ordem disfarçada
      oculta a luxúria sem luxo
de quem respira ( anfíbio) por palavras

varando sem pudor as madrugadas
   com luzes tímidas, passos cuidadosos
      notívago, lobo e pai
        nas ruas de florença

todo poeta é um perigo de nascença


sexta-feira, 13 de março de 2015

Raízes

         Para quem não tem mais pátria
          talvez escrever seja a única morada

                Theodor Adorno




E me perguntam onde estou
e me perguntam onde moro
tornaram-se enfim questões delicadas
Estou morando em minhas palavras
Às vezes sede, às vezes navalha
Às vezes também girassóis e asas

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Recife

e nadava no mar sujo
com sacos plásticos, canudos
águas-vivas, peixes, tubarões
cadáveres expostos
pernas retalhadas, tatuadas
e dava socos na água
chorava, queimava
e a água em silêncio
sangrava, matava

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

O espantalho

Ao meu redor cresce verde a lavoura
e eu sou de seca palha

Ao meu redor homens se movem e trabalham
e eu resisto imóvel ao meu ofício triste

Estou cercado de arame por toda parte
por toda parte assusto pássaros que amo

Meus braços estão abertos para o espanto
não para o trabalho ou abraço

Meu corpo de palha seca
nunca sentiu a volúpia dos bichos

Vivo abismado e só
escancarado sob a luz dos astros

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

O chafariz

Parece que saí de algum sonho, de alguma caverna
de algum lugar inóspito e aquecido
Imobilizado feito os corpos de Pompeia
virei uma estátua de cinza

Sou uma miragem entre os edifícios
mas tenho a realidade dos fantasmas
a errância dos bardos
a necessidade dos mendigos

Minha imobilidade é um artifício

A todo tempo oscilo
entre a inércia do meu corpo
e a fluidez do rio que abrigo