terça-feira, 30 de novembro de 2010

Don Juan cansado e a Terceira Mulher

O livro “ A terceira mulher”, do filósofo francês Gilles Lipovetvsky, traz algumas ideias instigantes para pensar o feminino no século XXI. Esboço aqui pelo menos duas dessas ideias.

Encontramos um capítulo com um subtítulo intitulado “ Don Juan cansado”. O mote é que por mais que ainda possa ser interessante para os homens exibirem suas conquistas amorosas e aventureiras, esse modelo donjuanesco estaria se tornando muito repetitivo e esgotado. O ideal de coleção de aventuras e seduções estaria perdendo terreno, mesmo entre os homens, para um endereço diferente do desejo com o sentimento de vínculo, companheirismo, cumplicidade erótica, traduzindo assim, não a ruína da identidade viril, mas um certo avanço, um certo equílibrio entre os dois sexos na vida amorosa. As dúvidas sobre essa argumentação me parecem ser múltiplas, mas extremamente convidativas à reflexão. Ainda mais porque é bem difícil dizer o que é ser masculino e feminino hoje.

Outro asssunto que me chamou a atenção nessa primeira leitura é que, por mais complexos que ainda sejam os temas das relações e diferenças entre o trabalho masculino e feminino, o poder está passando, de alguma forma, por uma feminização, mesmo entre as mulheres que em algum tempo recusaram a identificação com caracteríscas femininas milenares como a busca por pequenos artíficios da beleza, pelas maquiagens, pelos vestidos coloridos, elegantes ou descolados.

Antes entendido apenas como um poder diabólico de feiticeiras, a mulher trabalhadora, passando por conflitos em suas múltiplas faces sexuais, amorosas e familiares, não parece, segundo o pensamento de Lipovetsky, desejar abrir mão de suas características milenares, buscando-as cada vez mais, em todas as idades, no modo como como se veste, como usa seus brincos e colares, e, a meu ver, até no detalhe da pintura das unhas. Dúvidas sobre essa argumentação também rendem muitas costuras e escritos e tentarei retomar essas ideias em outra oportunidade. É um prazer ler Gilles Lipovetsky.

Lipovetsky, Gilles. A terceira mulher: permanência e revolução do feminino.Trad. Maria Lúcia Machado. Companhia das Letras.2000.

Título original: La troisième femme: permanence et révolution du féminin.Paris: Gallimard, 1997

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

A paixão no espelho

É como se eu cantasse sozinha dentro de uma gruta
e uma matéria nua me cercasse

Dentro em pouco serei uma mulher
de cabelos mais longos
estilhaços de alegria me atingindo por todos os lados
meus olhos, habitualmente pretos,
ficarão mais pretos ainda
Uma vontade sem medo de enfrentar os que chegam
e abençoar os que partem

É como se eu dançasse sozinha numa rua escura
e beijasse Lázaro
e me entregasse às feras
e aprendesse a dormir com as tempestades

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Rota do Fogo


" Eu uso óculos escuros pras minhas lágrimas esconder."
Jorge Mautner

para os meninos e meninas do século XXI



Está escrito na estrada:

Nós cuidamos de você

Doe Sangue

Solidariedade

Sob neblina reduza

a intensidade

Velocidade controlada por radar

Mantenha a distância da segurança

Luz baixa ao cruzar veículos

Seja bem-vindo, precisando ligue:

Eu preciso de você

Está acabando a brevidade

a deliciosa brevidade

Viaje de bem com a vida

domingo, 21 de novembro de 2010

Canção para ninar bacantes



Com olhos bem abertos para a vida,
viram um reino em tudo:
no sapo, no mato alto,
na teia de aranha –a cornucópia, a abundância do tempo –
pendurada no teto
E mesmo que as mãos se queimassem
mesmo que houvesse vento
as musas se protegiam
rindo muito noite adentro
uma bebia cais, a outra bebia espuma,
a terceira bebia porto
uma era fé, outra luz
a terceira uma ira plena de cinzas
Estreladas em noite alta
eram três marias sanguíneas
de hábitos muito azuis

sábado, 20 de novembro de 2010

Os prazeres da chuva


cada dia um pouco de chuva
molha os muros, lava os becos,
banha nossas calçadas,
encharca nossas sandálias,
e mesmo que em nossa casa
falte a água encanada
para lavar os cabelos e
desanuviar nossas almas,
cada dia um pouco de chuva
vai desmanchando máscaras
desnudando nossos reinos
acendendo nossa calma
cada dia, pouco a pouco,
vamos baixando os escudos
nos rendendo, umedecendo,
convertendo o medo em asas

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Troia

e vamos nos preparando para as olimpíadas
com presságios gregos
nuvens claras, temporais
notícias digitais

presentes gregos podem trair nossas muralhas
troianos podem levar nossas mulheres

a guerra de Troia começou com uma hospedagem
por isso
ou tenha muito cuidado com quem você hospeda
em sua colmeia
ou viva para valer  o risco
de uma Ilíada inteira e uma Odisseia

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Descoberta no espelho

Tua pequena varize
se insinuando na perna
fino rio de sangue azul
onde as tristezas navegam

herança de tua avó, de tua bisavó
marca do teu trabalho
do trabalho delas
cicatriz do filho que esperaste
e das escadas que subiste

tua pequena varize
não é doença ou velhice
mas antes sinal de beleza
irmã dos rios, dos navios e da chuva
irmã de todas as coisas
que ultrapassaram limites