terça-feira, 28 de junho de 2011

Morro da Conceição

Travessa do Sereno
Rua do Jogo da Bola
São Francisco da Prainha

Esses nomes me queimam
Rumor que amanhece cedo
e nunca deixa de arder

Os nomes das padarias,
mercearias, lavanderias
Nomes dos becos e pretos

Estrelas que avançam soltas
contra minha boca

Casas apinhadas
onde as mulheres oxigenadas
cercam a estátua de Camões

E a língua lusitana,
no doce gozo da tarde brasileira,
não deixa mais nada doer

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Chicletes de hortelã

Um porto faiscando em teus cabelos
Tua alegria inteira vindo para mim
mascando chicletes de hortelã

Com o céu da boca estrelado
me feres, me cuidas, me envenenas
e o cheiro forte que incensas
incendeia tudo e parte

Mas me voltas como mulher
mais uma vez
Terna música que escuto
Ritmo, verso, foice
com que arranco raízes
e canto

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Beatriz

Como se me preparasse para a festa
te aguardo
Não há lugar nem dia para nosso encontro
feito só de ilusão e maresia

Te espero e me apareces de súbito
retornando de uma viagem
trazendo todos os gozos
de que me poupaste

Minha ternura se abre para tocar-te
Janela aberta às aragens
Um jeito só meu de dizer sim

E há tanto riso na tua miragem
Tanta beleza sitiando a tarde
que até parece que voltaste de verdade

terça-feira, 21 de junho de 2011

Venditas

Damien Hirst



Aceito que me cubras
com palavras transparentes
É uma forma de cura

Aceito que resplandeças
com teus fogos de artifício
tua letra bem miúda
tua voz de professora

Aceito que me enganes
cada vez que escreves cartas
nesse tempo sem carteiros, sem telegramas
sem nada

Aceito que venhas por mera telepatia
minha intensa musa clara

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Ao pé do muro

E além do mais, eu também tenho
uma banda bichada onde um veneno fino
se destila
E essa outra banda que me salva
Pedra não é
e ao perecimento se castiga
Fruta no sereno
uma parte sã, outra perdida
O que me bicha e lixa e come seco
é o que em silêncio me espanta sem que eu saiba
Pode um bico de pássaro reter o meu destino
com a doçura própria de seu timbre
Posso secar ao sol com a casca empretecida
uma banda sã, outra maldita
Mundo, mundo, vasto mundo, estou aqui dividida
e nem rima nem solução seria
se eu me chamasse Aparecida
http://anonimundo.blogspot.com/

domingo, 19 de junho de 2011

Mênstruos

Modigliani


Os lençóis estão limpos
apesar dos meus mênstruos
posso chorar sobre eles
as minhas lágrimas limpas

Meus seios estão sãos
sem formações malignas
meu útero não tem feridas
Os anjos disseram que não vou ter filhos
eu que sou serva da vida

Os lençóis estão limpos
eu também estou limpa
até às tripas
Uma mulher do mundo tinha fluxos ininterruptos
tocou o vestido de Cristo e ficou sã

Eu estou sã como ela
cheia de desígnios e digna
o vinho fluindo quente
pelos lábios do sexo
a vida vil e ferida

Os lençóis estão limpos
apesar dos meus mênstruos
as lágrimas e a saliva límpidas
a noite enraizada na beleza
apesar da cólica e do sangue que me molha

sábado, 18 de junho de 2011

Poema para Pedro, o muito

"Muchacha en la ventana" Salvador Dalí,1925





Por tanto tempo amei Pedro
que já o deixara há anos
e ainda era cedo
e não havia mais jeito
e no entanto eu amava
como uma espécie de bicho que aguarda
como uma espécie de massa descansando

E Pedro era Pedro e muitos
não era um só
mas todos que eu ia amando pelo mundo
Em cada um era Pedro
em cada Pedro um segundo
mil e único
Vento estúpido, vento estúpido,
por que me fizeste uma só para um homem múltiplo?
Por que de mim não fizeste também tantas Marias
por tantos Pedros pecada
por tantos Pedros navegada?
Ao invés me deixaste só
sendo só uma e mais nada
Quando no fundo eu queria
ser as outras Marias
que Pedro também amava
e ser as outras mulheres com quem Pedro deitava
Vento estúpido, deus do múltiplo,
tu não me deste esta dádiva

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Clítia

Estou atada a um destino
como a um rochedo
Por séculos serei um girassol
acorrentado à luz

Amigo Prometeu, tu que roubaste
o fogo dos deuses para colocá-lo
no coração dos homens,
liberta agora meus olhos dessa escravidão

Preciso curar-me, amigo,
dessa claridade
Quero sombras para drenar
essa luz que não me dá sossego
Ensina-me um jeito de abrandar
o fogo e de expulsá-lo

Preciso de trevas para o meu desejo

domingo, 5 de junho de 2011

Canção da inveja

Invejo a paz dos homens nos aeroportos
Os comissários fardados rumando para o embarque
Invejo os condomínios fechados
os apartamentos bem decorados
as casas de muro alto
com seus cães de guarda
Invejo todas as coisas normais
que a toda hora sucedem
e todos os loucos breves
e as viúvas sadias com seus netos
Sinto inveja dos animais domésticos
e dos filhos que se despedem
e seguem pra escola
E por último dei para ter inveja
dos quartos bem arrumados
dos banheiros limpos
das cozinhas azulejadas e dos eletrodomésticos
E como se não bastasse
eu que sou devastado
e a tudo devasto com minha lava
invejo meus próprios versos
e a paz daqueles que os lêem
em suas casas
nos seus apês apertados
nas suas varandas amplas
nos seus sanitários brancos
nas suas invejas leves

Brasas

"La bruja", de Cildo Meireles


Há um desejo de chuva sobre brasas
e o invasor finalmente deixou esse país
Desejo de guardar as armas
e arrumar a casa
limpar armários, trancar arcas

A matéria escura dos meus cabelos
vai descendo com o vestido até os pés

Uma monja vai nascendo de mim
blindada sob véus e espadas

Ninguém se atreva a perturbar
esse silêncio de milênios
Ninguém ouse uma palavra
contra essa escuridão

Sou um submarino inacessível
sob muitas águas