terça-feira, 24 de novembro de 2015

Poema do Amor Imperfeito

Desse delírio tenho medo
desse delírio que ama e sonha
e me espera atrás do beco
e me ataca pelas costas
e se vinga do meu medo

Desse sonho, dessa viagem,
do nosso amor
tenho medo
quando ele vem sorrateiro
quando atravessa os bueiros
e me pega de surpresa
e me enterra um dardo
no peito

Do seu perdão tenho medo
desse perdão que liberta
e fere mais que a ofensa
e dói muito mais do que ódio

E mesmo com tudo isso
o amor amanhece refeito
nunca, nunca um amor perfeito
mas doído, trucidado
feito de carne e verdade

feito de estranha voragem
quase de cinzas composto
Brasas queimaram meu rosto
mas eu volto livre e amada
com cicatrizes guardadas

Vou voltando, meu amado,
ao nosso amor imperfeito
O que poderia, nesse mundo,
roubar-me a sua beleza?

Nem as feras, nem o bruxos
nem os circos enfeitiçados
nem os meninos mais tristes
nem o fado inexorável

Nem trapezistas ou mágicos
nem a morte, meu amado,
nem os saltos, nem as quedas
nem as fugas mais abertas
nada disso me atormenta

Quero o nosso amor a salvo
mesmo que sejam vorazes
os deuses que ousam matá-lo

Quero o nosso amor humano
mesmo que eu tenha medo
mesmo que seja frágil
nosso amor de porcelana

Mesmo que seja estranho
eu me lanço
delicada como uma borboleta
furiosa como uma lâmina

E uma coragem danada
me leva para os seus braços
um tipo de cegueira
uma escuridão quase acesa

Uma ventania dos diabos
vem açoitando meu corpo
cheio de juventude

E em você eu deságuo
sangro a romã dos seus lábios
desembaraço seus cabelos
alongados
beijo seu corpo forte, alto, iluminado

E permito tudo
absolutamente tudo
ao seu lado

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

rústicos

cercas de arame farpado sob a chuva
alegria nas pedras do lajedo e nos alpendres
fogueira mítica acesa entre escritos rupestres
meninos e meninas nus dançando ao redor
coice de cavalo, vela acesa dentro da geladeira a gás,
açudes de água morna, cactos, carroças
estávamos todos lá antes da luz elétrica
preparados para perdas e recomeços

sábado, 14 de novembro de 2015

Noturno sobre ponte na Baía de Guanabara

Eu ofereço
esse gosto pela forte chuva nas estradas
Naves, guindastes,
o ferro úmido de todas as coisas
que compõem a paisagem
Ofereço minha pele febril
minha estratégia de vida
Esse pequeno dilúvio
essas águas que vejo inundando tudo
Os mistérios todos à frente
dos faróis do automóvel
O sereno pacto de fazer parte do tráfego
entre grandes cidades
Ofereço a conversão desse desassossego
em trilhas iluminadas

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Homero

Era missão tua salvar
guerreiros do esquecimento
e depois palavras do abandono
Cantar amores e mortes
com esplendor e encanto

Trouxeste-nos  auroras e deuses
sangue e pranto

E era missão tua
abrandar nossas mágoas
com teus cantos

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Penas de uma casa em cinzas

 Traga-me um copo d'água, tenho sede."
              Gilberto Gil


É óbvio que anoiteceu
está registrado em fotos
em minas, em mapas
Não posso trazer de volta o passado
imitando a voz dos mortos
Não posso devolver sua mãe,
sua filha, sua falta
O que há por dentro são gambiarras
madeiras úmidas, telhas e vidraças quebradas
A vida gotejando no balde
e a caixa de amianto vazia
de onde espero toda água possível
para o chão limpo e claro que preciso

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

O carteiro e a poeta

Não quero deixar de conhecer
Pasárgada, Shangri-lá e Atlântida
ainda bem que daqui de casa
posso ir até lá com asas
ou a nado
vou pela rota contrária
oceano pacífico e feroz
ouço todo dia sua voz
antiga e total
nem preciso de satélite
lá mesmo não preciso chegar
e são tantas cartas, contas, telegramas
há mil anos e séculos
e esperei tanto, tanto, tanto
aqui nesse Rio de Janeiro
que acabei me apaixonando pelo carteiro

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Um pomar no escuro

                                                                 Remedios Varo



                       

                        Marimbondos estalando pelo corpo
                        cacos de vidro verde sobre o muro
                        mínimos guardiões desse desejo
                        de furtar teus frutos
                        e desabotoar essas paredes,
                        calhas, luzes, rochedos
                        que dividem e separam
                        minhas chamas das tuas




quarta-feira, 4 de novembro de 2015

imigrantes

No hemisfério norte
era novembro ainda e ela  disse que ia embora.
Voltaria ao seu país, à sua terra, aos seus navios e barcos
Como quem não quer nada ele perguntou:
Por que não aguarda o  verão?
Ela aguardou:
semanas, meses. anos
Até hoje não decidiram quando é exatamente o verão
nem primavera nem inverno nem outono
nem sul nem norte
nem se existe realmente um país para onde voltar
Desnorteada e sem geografia
respirou
cedeu ao jogo do amigo
toques, massagens, abraços
e tombou inteira em suas mãos