sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Carlos Drummond de Andrade


Gosto da água que bebo
em seu filtro de barro
límpida e sagrada
parece de mina
Que importa se a bebo
em um mero copo de plástico?

Não consigo olhar direto em seus olhos
brumas, neblina
onde até fumaça de cigarro fica pura

Acabamos de nos unir pela loucura
mas me apoio na lucidez que nos separa

Não posso ler seus livros
nem você os meus. É nosso pacto de cura

Respiro bem seu ar de São Francisco
sua voz tem gosto e cor
e me come em segredo
ou serei eu que como a sua voz
- pão de palavras?

sábado, 23 de outubro de 2010

Raízes

“Para quem não tem mais pátria
talvez escrever seja a única morada”
Theodor Adorno

E me perguntam onde estou
e me perguntam onde moro
tornaram-se enfim questões delicadas
Estou morando em minhas palavras
às vezes sede, às vezes navalha
às vezes também girassóis e asas

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Bacante

Em meu ninho longínquo
inicio ventos
invento cios
canto e danço em volta do fogo
tranformo meu leite em vinho
e ofereço meu corpo para os lobos

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Santa Clara


Amanheci de um modo novo hoje
as luzes de sempre
não me prendem mais com suas âncoras
queimei as lanças
e fui deixando para trás
a casa, o pátio, a aldeia
docemente ensolarada

Rasguei as certezas
enterrei os vestidos
e agora tenho por riqueza o vento

que sustenta os pássaros

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Dúvidas sobre Lipovetsky e o conceito de narcisismo


Recentemente, lendo o filósofo francês Gilles Lipovetsky, faço algumas breves reflexões a partir do capítulo “ Narciso ou a estratégia do vazio”, do livro “ A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo”.

Segundo o autor francês, o sujeito atual está, por assim dizer, vivendo em um bunker narcisista. Ele entende essa noção não apenas como uma vivência voltada exclusivamente ao culto ao corpo, à beleza padronizada, ao não envelhecimento, ao consumo, mas a um outro estilo de vida que ele denomina homo psychologicus :o indivíduo preocupado antes de tudo com seu bem-estar. E nessa busca pelo bem- estar, ele inclui tudo: yoga, acupuntura, medicinas alternativas, todos os orientalismos arrancados de suas raízes e transportados para o Ocidente, seitas religiosas, indústria farmacêutica, psicoterapias em geral etc.

Sem nenhum tipo de motivação essencial, o Narciso contemporâneo busca de toda forma sobreviver à sua própria apatia (em grego: ausência de paixões), tentando realizar-se apenas no seu próprio poder de consumo e na estabilidade de sua saúde. Sem grandes causas sociais, religiosas, artísticas, o que importa é cada um por si, refugiando-se no seu eu ou no seio de uma pequena família cada vez mais frágil. O eu como nossa única âncora, raiz, proteção , nosso bunker, um escafandro no mar.

Algo mais narcisista ainda seria a busca desses sujeitos por uma autossufiência afetiva, a fuga do arrebatamento, do embate amoroso, das relações densas com os outros. Tudo se passa em um meio muito “ climatizado”, sem grandes acirramentos de pontos de vistas, sem grandes hostilidades.

Claro que essa paisagem é hoje muito mais visível para os teóricos europeus, mas até que ponto também não começa a ser a nossa?

Outros autores acentuam a vivência de emoções de modo transferido, como no caso de filmes, esportes, espetáculos, exposição da intimidade das celebridades. Não estaríamos vivendo, estaríamos sendo vividos. É como se o que está na tela vivesse por nós, transferimos nossas necessidades de aventuras e paixões fortes para algo fora de nós e levamos uma existência indolor e sem riscos. Diagnóstico de uma sociedade altamente hedonística e esvaziada.

Minhas dúvidas são muitas. Se por acaso concordarmos com algumas ideias de Lipovetsky, como tornaríamos Narciso alguém que se abre para o corte, para o desconhecido, para o desafio? Se todos querem ser anestesiados, se ninguém tem mais tempo de sofrer, se sofrer se tornou algo extremamente antiquado e vergonhoso, quais seriam as paixões possíveis? É proibido sofrer, é proibido se entregar, é proibido se arriscar.

Em outras palavras, a ideia é: controle seus sentimentos acima de tudo, pratique hábitos saudáveis, não aparente envelhecer, alimente-se bem, faça check-up, cuide de si e não caia na armadilha das paixões, nem no perigo de nenhuma causa maior além da segurança da sua existência individual ou da pequena família da qual você faz parte. É o estilo de vida mais inofensivo que talvez possamos ver, uma vidinha consumada e consumida pelo consumo, dedicada à saúde e ao bem-estar. Será que nós também estamos condenados à essa apatia, será que algum fogo ainda acende nossos espelhos frios? A gente quer só isso?