sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Os contratrilhos do bonde


                                                       Fogo Cruzado- Ronald Duarte



O motorneiro me explica
que o bonde é guiado
pelos contratrilhos.
A fenda entre os trilhos
dá a direção
as retas, as curvas, os caminhos.
Pergunta se estou desconfortável
ali em pé ao seu lado
segurando a roda de ferro do freio.
Digo que o conforto não é prioridade
e sim o desejo de estar ali à frente
com os cabelos assanhados pelo fogo.
Agarrada à vida com muita força sigo
para novos e delicados perigos

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Página do diário de bordo

Enquanto você desenha calendários na sala,
ouço barcos e cais
Farol que iluminas as milhas
Você me faz
C’est toi qui m’a fait
Pele, gestos, unhas
Tudo inventado por você
Enquanto você calcula nossos dias na sala
enquanto trama novas aragens
conto nossa viagem em palavras
teço um livro há anos
com sua lã, seus cabelos, sua aura

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Dânae e os pensamentos de Zeus

Klimt




Quero alcançar-te com a chuva em que me transformo toda tarde
invadir os altos muros com meus erros
cercar-te com navios
guardar-te sob meus pés de ave

Ando vadiando ao redor dessas terras
à espera de que tuas torres desabem
e que nada mais te salve

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Lançamento de livro de poemas

 Esse  livro de poemas inéditos e escolhidos será lançado na próxima segunda-feira em Natal-RN, na livraria Siciliano, no Shopping Midway Mall, a partir das 19 horas. Estão todos convidados.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Idílio

Entre notícias antigas e muralhas
construí com você
um amor feito alucinadamente de palavras
Meus versos seduzem os seus
seus versos aliciam os meus
Coloquei nossos livros juntos na estante
para que se toquem
e se amem clandestinamente
durante as madrugadas

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

As vestes

http://anonimundo.blogspot.com/
Enfrentei furacões com meus vestidos claros
Quem me vê por aí com esses vestidos
estampados
não imagina as grades, os muros
o chão de cimento que eles tornaram leves
Não se imagina  a escuridão
que esses vestidos cobrem
e dentro da escuridão os incêndios que retornam
cada vez que me dispo
cada vez que a nudez me liberta dos seus laços

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Fiat Lux

Banhamo-nos em teu desejo
e naquilo que nos transmites com mãos tépidas:
Telescópios, criação de abelhas
Cuidado com pássaros e filhos

Tudo cabe nas nuvens que carregas
Estende-te ao sol
nossa ama e senhora
clareando cada cômodo da casa
com vozes e passos
Mesmo tua ausência inunda de calor
os corpos que tocamos

Aprendemos a recolher-te, amiga,
em pequenos vidros quebrados
lâminas comuns das facas na cozinha
ou no varal de roupas sobre os vasos de plantas

O gume de tua força fende as coisas mais óbvias
De onde, aturdidos,
vemos asas brotando

sábado, 4 de dezembro de 2010

Veraneio

Ele a cobria
com a brisa úmida da tarde
e ela saía assim
toda feita de brisa

Abençoada pelos olhos que mentiam
fingindo não ver o que era frágil
as saudades que iam nascer
por baixo daqueles cabelos

Saía de suas mãos com a força de uma estrela
Ninguém podia ver
os joelhos feridos
da menina feliz que ele inventava
naquelas tardes febris de veraneio

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

o teu demônio

O teu demônio me segue
anos a fio
Tece flores para mim
divide meu corpo em partes

Ele me culpa
acena feliz por trás das labaredas
dança ao meu redor
cresce como uma planta
aparo suas bordas seu rabo seus chifres

O teu demônio me encanta
como um retrato antigo amarelado
uma xícara de louça no mercado

O teu demônio me espanta
canta para mim todas as noites
me arde me explora me atormenta
O hálito quente sobre a minha boca
a febre sempre

O teu demônio vai embora hoje
eu fujo dentro dele a galope
e vivo dentro dele feito um passarinho
feito uma coisa miúda enorme pobre
dilatada como um crucifixo
dura como uma esmeralda

Me esmero e espero
um dia me chamo Laura
tu me abocanhas os peitos
eu te abocanho a alma

Olívia no século XIX

Sob a chuva delicada
em parte alguma há teus sinais
nem leve musgo sobre o barro
nem músicas se escutam mais

Nessa dança compassada
escrevo cartas demais
para o porto, para o fogo

Com essas tranças onduladas
sou abelha, sou rainha
mesmo que a rua não seja minha

Sob a água delicada
não conheço para onde vais
nunca dancei contigo
não sei  se és terror ou cais

Memória

O musgo vai cobrindo as paredes
entre as quais vivemos
se alastra sobre fotografias
Lâminas verdes de silêncio
calam nossa memória
nossas alegrias
E um dia tudo será passado
vou olhar para tudo sem dor
sem medo nem esperança
como uma obra pintada por outra pessoa
sem uma gota do meu sangue

A falta que mata

Onde estão as fadas que viriam
varrer os entulhos dessa casa?
Onde estão os amantes e as bruxas
com suas duras risadas?

E os anões e os loucos
e todos os outros demônios
que amei e inventei?

Para onde fugiram
onde se meteram neste dia claro?
Por que me abandonaram?

A onda

Nasci da força do vento
para viver me afasto do meu centro
fujo da minha raiz
Peixe-pássaro viajo
vou longe, muito longe
levo navios e barcas
e numa praia qualquer
me despedaço em cachos
de espanto e espuma

Cenas de Ouro Preto

É preciso ter a medida certa de febre
a dose certa de encanto
e fino tato

Aqui é tudo delicado e precioso
as cruzes ancoradas nas pontes
enfeitadas e coloridas com papel crepom

Na Páscoa fizemos coloridos tapetes com serragem
Não temos mar
mas um trem corta vivo as montanhas
como um peixe imenso

A chegada de Mercúrio

Acendes espelhos por onde passo
e mesmo em tua fúria
inventas silêncios que me acalmam
mirantes fogueiras viagens
tudo me trazes nos dias em que ancoras
tua ventania nos meus braços

Brinquedos

Os brinquedos eram vivos mas mutilados
Às vezes os rios levam os brinquedos da gente
e ficamos ali à beira das águas
esperando outros trazidos pelo tempo:
um porco-espinho sem pata
bonecos sem braços
carrinhos sem roda

As crianças se sobressaltam
em risos delicados
Telefonam para alguém que não existe
Dobram sem cuidado as próprias pernas
como as pernas dos bonecos tristes
e se perguntam espantados:
será que os brinquedos belos existem?

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

O espantalho

 Ao meu redor cresce verde a lavoura
e eu sou de seca palha

Ao meu redor homens se movem e trabalham
e eu resisto imóvel ao meu ofício triste

Estou cercado de arame por toda parte
por toda parte assusto pássaros que amo

Meus braços estão abertos para o espanto
não para o trabalho ou o abraço

Meu corpo de palha seca
nunca sentiu a volúpia dos bichos

Vivo abismado e só
escancarado sob a luz dos astros




http://anonimundo.blogspot.com/



Narcissism and Celebrities

Picasso



" The thriving globalization is turning things into better situations for citizens.
That’s in-your-face and undeniable. In South Africa I can talk to an Asian keypal without difficulties. Furthermore, I could see the face of that friend.
As the world has become a “village”, everyone’s closer to each other, and people can reach their wishes out more efficient and frequently. For example, the fame, jobs, in short: values which are exposed and wanted like labels became easier to achieve. Anyone can get famous just in a blink by uploading any innovative video on YouTube, even if that one hasn’t studied or worked enough to accomplish the goals.
As a result, more people have gotten noticeable, but unfortunately the majority of them don’t know how to handle this sudden fame. So sooner or later they’ll see the failure knocking on their door, even more if they face the new reality with extreme narcissism.
A crucial point which can determine the destiny of those “new celebrities” is that narcissism. I mean, every celebrity is narcissistic and so we are because that’s a common sort of human characteristic. Which levels can vary according to each one.
People who talk back to everybody (don’t care about the others and are always looking for success, beauty and fame, without worry about who’s on their way) are too narcissistic and have great possibilities of losing what they want. Just because they want too much."

Matheus de Simone Maciel


(16 anos) aluno do IFF-Cabo Frio

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Don Juan cansado e a Terceira Mulher

O livro “ A terceira mulher”, do filósofo francês Gilles Lipovetvsky, traz algumas ideias instigantes para pensar o feminino no século XXI. Esboço aqui pelo menos duas dessas ideias.

Encontramos um capítulo com um subtítulo intitulado “ Don Juan cansado”. O mote é que por mais que ainda possa ser interessante para os homens exibirem suas conquistas amorosas e aventureiras, esse modelo donjuanesco estaria se tornando muito repetitivo e esgotado. O ideal de coleção de aventuras e seduções estaria perdendo terreno, mesmo entre os homens, para um endereço diferente do desejo com o sentimento de vínculo, companheirismo, cumplicidade erótica, traduzindo assim, não a ruína da identidade viril, mas um certo avanço, um certo equílibrio entre os dois sexos na vida amorosa. As dúvidas sobre essa argumentação me parecem ser múltiplas, mas extremamente convidativas à reflexão. Ainda mais porque é bem difícil dizer o que é ser masculino e feminino hoje.

Outro asssunto que me chamou a atenção nessa primeira leitura é que, por mais complexos que ainda sejam os temas das relações e diferenças entre o trabalho masculino e feminino, o poder está passando, de alguma forma, por uma feminização, mesmo entre as mulheres que em algum tempo recusaram a identificação com caracteríscas femininas milenares como a busca por pequenos artíficios da beleza, pelas maquiagens, pelos vestidos coloridos, elegantes ou descolados.

Antes entendido apenas como um poder diabólico de feiticeiras, a mulher trabalhadora, passando por conflitos em suas múltiplas faces sexuais, amorosas e familiares, não parece, segundo o pensamento de Lipovetsky, desejar abrir mão de suas características milenares, buscando-as cada vez mais, em todas as idades, no modo como como se veste, como usa seus brincos e colares, e, a meu ver, até no detalhe da pintura das unhas. Dúvidas sobre essa argumentação também rendem muitas costuras e escritos e tentarei retomar essas ideias em outra oportunidade. É um prazer ler Gilles Lipovetsky.

Lipovetsky, Gilles. A terceira mulher: permanência e revolução do feminino.Trad. Maria Lúcia Machado. Companhia das Letras.2000.

Título original: La troisième femme: permanence et révolution du féminin.Paris: Gallimard, 1997

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

A paixão no espelho

É como se eu cantasse sozinha dentro de uma gruta
e uma matéria nua me cercasse

Dentro em pouco serei uma mulher
de cabelos mais longos
estilhaços de alegria me atingindo por todos os lados
meus olhos, habitualmente pretos,
ficarão mais pretos ainda
Uma vontade sem medo de enfrentar os que chegam
e abençoar os que partem

É como se eu dançasse sozinha numa rua escura
e beijasse Lázaro
e me entregasse às feras
e aprendesse a dormir com as tempestades

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Rota do Fogo


" Eu uso óculos escuros pras minhas lágrimas esconder."
Jorge Mautner

para os meninos e meninas do século XXI



Está escrito na estrada:

Nós cuidamos de você

Doe Sangue

Solidariedade

Sob neblina reduza

a intensidade

Velocidade controlada por radar

Mantenha a distância da segurança

Luz baixa ao cruzar veículos

Seja bem-vindo, precisando ligue:

Eu preciso de você

Está acabando a brevidade

a deliciosa brevidade

Viaje de bem com a vida

domingo, 21 de novembro de 2010

Canção para ninar bacantes



Com olhos bem abertos para a vida,
viram um reino em tudo:
no sapo, no mato alto,
na teia de aranha –a cornucópia, a abundância do tempo –
pendurada no teto
E mesmo que as mãos se queimassem
mesmo que houvesse vento
as musas se protegiam
rindo muito noite adentro
uma bebia cais, a outra bebia espuma,
a terceira bebia porto
uma era fé, outra luz
a terceira uma ira plena de cinzas
Estreladas em noite alta
eram três marias sanguíneas
de hábitos muito azuis

sábado, 20 de novembro de 2010

Os prazeres da chuva


cada dia um pouco de chuva
molha os muros, lava os becos,
banha nossas calçadas,
encharca nossas sandálias,
e mesmo que em nossa casa
falte a água encanada
para lavar os cabelos e
desanuviar nossas almas,
cada dia um pouco de chuva
vai desmanchando máscaras
desnudando nossos reinos
acendendo nossa calma
cada dia, pouco a pouco,
vamos baixando os escudos
nos rendendo, umedecendo,
convertendo o medo em asas

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Troia

e vamos nos preparando para as olimpíadas
com presságios gregos
nuvens claras, temporais
notícias digitais

presentes gregos podem trair nossas muralhas
troianos podem levar nossas mulheres

a guerra de Troia começou com uma hospedagem
por isso
ou tenha muito cuidado com quem você hospeda
em sua colmeia
ou viva para valer  o risco
de uma Ilíada inteira e uma Odisseia

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Descoberta no espelho

Tua pequena varize
se insinuando na perna
fino rio de sangue azul
onde as tristezas navegam

herança de tua avó, de tua bisavó
marca do teu trabalho
do trabalho delas
cicatriz do filho que esperaste
e das escadas que subiste

tua pequena varize
não é doença ou velhice
mas antes sinal de beleza
irmã dos rios, dos navios e da chuva
irmã de todas as coisas
que ultrapassaram limites

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Carlos Drummond de Andrade


Gosto da água que bebo
em seu filtro de barro
límpida e sagrada
parece de mina
Que importa se a bebo
em um mero copo de plástico?

Não consigo olhar direto em seus olhos
brumas, neblina
onde até fumaça de cigarro fica pura

Acabamos de nos unir pela loucura
mas me apoio na lucidez que nos separa

Não posso ler seus livros
nem você os meus. É nosso pacto de cura

Respiro bem seu ar de São Francisco
sua voz tem gosto e cor
e me come em segredo
ou serei eu que como a sua voz
- pão de palavras?

sábado, 23 de outubro de 2010

Raízes

“Para quem não tem mais pátria
talvez escrever seja a única morada”
Theodor Adorno

E me perguntam onde estou
e me perguntam onde moro
tornaram-se enfim questões delicadas
Estou morando em minhas palavras
às vezes sede, às vezes navalha
às vezes também girassóis e asas

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Bacante

Em meu ninho longínquo
inicio ventos
invento cios
canto e danço em volta do fogo
tranformo meu leite em vinho
e ofereço meu corpo para os lobos

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Santa Clara


Amanheci de um modo novo hoje
as luzes de sempre
não me prendem mais com suas âncoras
queimei as lanças
e fui deixando para trás
a casa, o pátio, a aldeia
docemente ensolarada

Rasguei as certezas
enterrei os vestidos
e agora tenho por riqueza o vento

que sustenta os pássaros

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Dúvidas sobre Lipovetsky e o conceito de narcisismo


Recentemente, lendo o filósofo francês Gilles Lipovetsky, faço algumas breves reflexões a partir do capítulo “ Narciso ou a estratégia do vazio”, do livro “ A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo”.

Segundo o autor francês, o sujeito atual está, por assim dizer, vivendo em um bunker narcisista. Ele entende essa noção não apenas como uma vivência voltada exclusivamente ao culto ao corpo, à beleza padronizada, ao não envelhecimento, ao consumo, mas a um outro estilo de vida que ele denomina homo psychologicus :o indivíduo preocupado antes de tudo com seu bem-estar. E nessa busca pelo bem- estar, ele inclui tudo: yoga, acupuntura, medicinas alternativas, todos os orientalismos arrancados de suas raízes e transportados para o Ocidente, seitas religiosas, indústria farmacêutica, psicoterapias em geral etc.

Sem nenhum tipo de motivação essencial, o Narciso contemporâneo busca de toda forma sobreviver à sua própria apatia (em grego: ausência de paixões), tentando realizar-se apenas no seu próprio poder de consumo e na estabilidade de sua saúde. Sem grandes causas sociais, religiosas, artísticas, o que importa é cada um por si, refugiando-se no seu eu ou no seio de uma pequena família cada vez mais frágil. O eu como nossa única âncora, raiz, proteção , nosso bunker, um escafandro no mar.

Algo mais narcisista ainda seria a busca desses sujeitos por uma autossufiência afetiva, a fuga do arrebatamento, do embate amoroso, das relações densas com os outros. Tudo se passa em um meio muito “ climatizado”, sem grandes acirramentos de pontos de vistas, sem grandes hostilidades.

Claro que essa paisagem é hoje muito mais visível para os teóricos europeus, mas até que ponto também não começa a ser a nossa?

Outros autores acentuam a vivência de emoções de modo transferido, como no caso de filmes, esportes, espetáculos, exposição da intimidade das celebridades. Não estaríamos vivendo, estaríamos sendo vividos. É como se o que está na tela vivesse por nós, transferimos nossas necessidades de aventuras e paixões fortes para algo fora de nós e levamos uma existência indolor e sem riscos. Diagnóstico de uma sociedade altamente hedonística e esvaziada.

Minhas dúvidas são muitas. Se por acaso concordarmos com algumas ideias de Lipovetsky, como tornaríamos Narciso alguém que se abre para o corte, para o desconhecido, para o desafio? Se todos querem ser anestesiados, se ninguém tem mais tempo de sofrer, se sofrer se tornou algo extremamente antiquado e vergonhoso, quais seriam as paixões possíveis? É proibido sofrer, é proibido se entregar, é proibido se arriscar.

Em outras palavras, a ideia é: controle seus sentimentos acima de tudo, pratique hábitos saudáveis, não aparente envelhecer, alimente-se bem, faça check-up, cuide de si e não caia na armadilha das paixões, nem no perigo de nenhuma causa maior além da segurança da sua existência individual ou da pequena família da qual você faz parte. É o estilo de vida mais inofensivo que talvez possamos ver, uma vidinha consumada e consumida pelo consumo, dedicada à saúde e ao bem-estar. Será que nós também estamos condenados à essa apatia, será que algum fogo ainda acende nossos espelhos frios? A gente quer só isso?








































sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Praia de Ponta Negra

" Nada, nada, nadador...”
Jorge de Lima

Nadei tanto, tanto, tanto
fosse noite ou fosse dia
anfíbio eu era
metade água, outra terra

Sobrevivi porque contei tudo ao mar
ele sabe como respiro
guardei lá meus gritos
e misturei minhas lágrimas a seus sais

Fui queimada por algas
e, alentada pela espuma leve,
dei minha dor às ondas

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Caio Fernando Abreu, o intenso educador

" Cuidamos das opiniões e do saber alheios e pronto; é preciso torná-los nossos."
Michel de Montaigne

por Karina Santos( 16 anos), aluna do IFF-Cabo Frio

"Intenso. Não poderia começar a falar dele com outra palavra. Nele há a coragem e a transparência da dor, a coragem de doar vazios a outros vazios. Dedico minha intensidade a quem me tornou intensa, um mestre chamado Caio Fernando Abreu.
Acho que nunca foi a intenção dele ser um educador, nem ensinar algo a alguém, mas foi isso que ele fez comigo, me apresentou outros mundos, dando valor a íntimas e pequenas coisas com a intensa forma de seus passos. Ainda aprendo, me encanto, me apaixono cada vez mais com suas palavras. Ele não era só um mestre literário, mas um mestre da vida."


Pedantismo


"Cumpre entretanto indagar quem sabe melhor e não quem sabe mais." - Michel de Montaigne



"Ao ter uma atitude pedante, o indivíduo não permite críticas nem aprendizado, já que acha que sabe tudo, porém sabe muito menos do que acha que sabe. Logo, o pedantismo cria uma barreira entre o pedante e o mundo ao seu redor, impedindo o conhecimento, um desenvolvimento. Ou seja, ao dizer que não precisa da sabedoria do outro, a pessoa pode até evoluir em alguns aspectos intelectuais por conta própria, mas não necessariamente essa evolução será sustentável. O indivíduo não se desenvolverá, pois em muitos outros aspectos ele estará errando, por exemplo, ao não ser modesto. Portanto, de nada vale a sabedoria estagnada, que não se move de forma recíproca, não é passada nem recebida. Então uma outra dimensão é construída pelo pedante, como um "autista", negando-se ao externo, entretanto, internamente se negando. Pois, a meu ver, é inerente ao ser a natureza social, a troca, o convívio, assim, este irá contra sua espécie, até chegar à desumanização do humano, ao animalesco. Mas era destinado a pensar, fazer pensar, já que existe, pois, para pensar. Será?"




Matheus Maciel (15 anos), aluno do IFF Cabo Frio

domingo, 29 de agosto de 2010

Prisões




Antes eu era o incêndio
agora faço seguro contra fogo
contra roubos

Eu mesma era furacão
eu mesma roubava
agora apaziguo tudo e tranco

Antes eu era as perdas
agora sou vista pelo bairro, precavida,
comprando cadeados sob medida

domingo, 8 de agosto de 2010

Mulher da saia plissada

uma cólica breve
me permitiu essa tarde
não malhar, não dar aulas
não ir ao banco, ao cinema
nem dentista, astrólogo ou mágico

ficar somente à espera

de que a dor passe
de que as horas passem
com seu aveludado rumor de primavera

uma cólica essa tarde
me libertou de ter amigos
partos, livros, raios, marido
trabalho, pasmos

me libertou até do mistério
da vestimenta dos reis

essa tarde só esse ventre
escoando
luzes cor de púrpura se pondo

um corpo assumindo sua dor
sobrado quieto fechado
onde móveis sólidos e mudos
dialogam sozinhos com o passado


quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Agosto

Como um hiato às voltas com escuro
pulsa o meu poema
e vibra frio vidro estilhaçado
numa ameaça de espanto que me ronda
Como uma espécie de arma, como um músculo
o meu poema me cerca
com gargalhadas de doido
com esperanças de cura
Ele me assusta me segura me defende
com uma mão de fantasma
contra a morte
O meu poema é um cio, uma dor que me cuida
um cão, uma mãe que canta
um corpo moreno e luta

domingo, 18 de julho de 2010

A terra e o fogo

Terra úmida é o que sou
E tua voz me fecunda
Abre fendas em mim
Por onde os meninos vão nascer

Sou essa planície deitada
Sob o vento forte
Esse vale que invades
Sou domínio teu
Tua carne
Cera sob o teu poder

Sou o que queres que eu seja
Enxame, cardume, aves
Noite, noite, noite
que a tua luz esmaga sem vencer


Poema publicado na revista Geologia para poetas. Casa da Ciência/UFRJ.Rio de Janeiro.2009. Iniciativa da poeta e professora de Geologia Maria Dolores Wanderley.
Mais poemas: www.palavrarte.com/equipe/equipe_iracema.php

sexta-feira, 16 de julho de 2010

A Gravidez de Zeus

Mais uma vez houve fúria contra um filho de Zeus. Para salvar Dioniso, o pai guarda o coração do filho em sua própria coxa. Grávido, por fim, traz de volta ao mundo o deus do vinho e da folia. Por esses dias me senti grávida de gêmeos, cada um em uma de minhas coxas, úteros imaginários que talvez representem a força grávida dos que caminham férteis e feridos e não se deixam cicatrizar totalmente. Muitas vezes somos nômades em nosso próprio corpo e a vida pode ser um passeio insólito, estranho, absurdamente belo: os passos de alguém grávido em suas coxas, pernas, em todos os os seus poros e pelos.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Fragmentos sérios da Foliasofia

No quarto livro de A gaia ciência alguns aforismos são reveladores de uma filosofia trágica de Nietzsche e, aproveitando o ensejo de A gaia ciência, contextualizo esse conceito irreverente de foliasofia. Após a primeira fase de juventude de Nietzsche em que tragédia e obra de arte estavam intrinsecamente ligadas temos o momento de maturidade em que a tragédia é ora o risco da total ausência de referências estáveis como o registro da pergunta no aforismo 34 de Humano, demasiado humamo: “mas nossa filosofia não se torna assim uma tragédia?”, ora o início de uma experiência de afirmação da existência. Em ambos os casos um outro aspecto da filosofia trágica se apresenta: O conhecimento trágico como mutável, passível de transformação e reaprendizagem, desconfiado do que é sólido e das opiniões petrificadas. Nesse sentido já no segundo volume do Humano, demasiado humano, em O Andarilho e sua sombra, no aforismo 332, Nietzsche afirmava que não nos faríamos queimar por nossas opiniões, tão pouco seguros nos sentimos acerca delas, mas pelo direito de ter opiniões e de poder mudá-las. Nada impede que haja um deslizamento contínuo em nossas opiniões, não estamos presos a um caráter único, a uma única forma de pessoa, a uma única possibilidade de vida. Ao conceito de alma imortal Nietzsche nos acrescenta a ideia de muitas almas mortais ( viele sterbliche Seelen) que não cessam de se transformar em nós. Essa ideia pode ser encontrada no aforismo 17 do segundo volume do Humano, demasiado humano. Somos enquanto sujeito plural, um feixe de muitas almas, uma multiplicidade. Também a partir do aforismo 305 desse segundo volume, entendemos que para exercício dessa multiplicidade é preciso saber perder-se a si mesmo de vez em quando. Para um pensador seria prejudicial estar sempre ligado a uma só pessoa, a um único olhar, a única forma de ver a vida. Foliasofia , a meu ver, é também uma forma mais plural de filosofar.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Textos críticos a propósito de Lance de dardos

Os dardos poéticos de Iracema Macedo - Marcus Vinicius
Brincos de vagalume para a orelha do livro de Iracema Macedo : Lance de dardos
-Tereza Cristina Cunha
Lance de dardos : poesia e paixão - Nei Leandro de Castro
Dardos que despertam o abismo - Pablo Capistrano
O discurso do corpo ( Anotações à margem de “ Lance de dardos”, de Iracema Macedo) - Nelson Patriota
Um pouco de poesia - Affonso Romano de Sant'Anna

Os dardos poéticos de Iracema Macedo

Marcus Vinicius

O título, com seu jogo de palavras, e a epígrafe da qual ele é paródia são uma falsa pista : a obra não é mallarmaica. Isto não invalida o achado do título, e a leitura dos vinte e cinco poemas de que se compõem o livro vai confirmar que os versos são mesmo dardos, não dados.
Nesta edição, a autora reúne ainda três outras obras (publicadas anteriormente ao lado dos poemas de Eli Celso e André Vesne): “Vale Feliz”(1991), “A Casa”( 1995) e “Brincantes do Reisado”(1998).
Lírica em todos os poemas, Iracema parece se desprender da influência inicial de Adélia Prado, e , se tivéssemos que lembrar outra voz feminina, preferiríamos pensar em Clarice Lispector. Para quem se espantar, recomendamos o ensaio de Roberto Corrêa dos Santos em que ele lê os poemas desentranhados nos romances de Clarice. Certas imagens-pensamento bem poderiam ter sido ditas por ela, como “o amor a tristeza e a aventura de ser carne em meio a tantas pedras” ou “e aprendesse a dormir com as tempestades”. Há ainda em sua obra referências a Drummond e Bandeira, que soam mais como admiração do que como influência. A propósito, a poeta tem uma dicção bastante pessoal. Neste último livro, o lirismo cotidiano parece dar vez a um lirismo incômodo, não reconciliado. Estrategicamente, o sujeito se faz objeto e se oferece sem idealizações e “happy ends” românticos. Vejamos alguns versos: “e ofereço meu corpo para os lobos”, “Não conhecia o esplendor da queda/ nem a violência dos abismos”, “Parece que saí...de algum lugar inóspito...”, “o pássaro assim tão desmedido/poderá espatifar-se no rochedo”, “uma face...para oferecer.../ a todo tipo de amor que atravessar a vidraça e vier me ferir com seus dardos.”
Boa parte dos poemas tem a mesma proposta estética: lida alegoricamente com um tema (normalmente o amoroso) e desdobra-se em imagens metafóricas. A poeta, a partir de uma seleção semântica, intensifica as relações das palavras no plano conotativo. Desta forma, temos a imagística do jogo de cartas em Jogo em Florença, a do mar em Poema do lobo-do-mar e em Canção da mulher que virou barco, só para citarmos alguns exemplos. Já no belo Arthur Bispo do Rosário, ela diz “Bordo delírios em panos...sou apenas/ um arquiteto de miragens” como se falasse por ele. Sua obra não tem a quantidade delirante de Bispo, mas podemos dizer que Iracema é também uma arquiteta de imagens, pois seus poemas se dão sempre no plano metafórico, mas com uma linguagem mais enxuta e inquietante.
Todo texto é um dardo certeiro no leitor que se vê obrigado a pensar-sentir os versos lidos – estas “tempestades onde atracar”. Lírica, erótica, delicada, incisiva, ou questionadora, a poesia de Iracema Macedo se faz com a palavra-idéia, dentro da linhagem dos poetas que têm algo dizer e, ao mesmo tempo, ela desdiz as expectativas, poéticas ou existenciais, do mundo. Seus poemas, cuja qualidade não oscila em momento algum do livro, sempre nos surpreendem e nos fustigam, pois trazem a armadilha de “um coração cheio de vespas.”

Jornal Panorama da Palavra n.11, Rio de Janeiro, junho/julho de 2000.

Marcus Vinicius é professor de literatura e poeta.










Brincos de vagalume para a orelha do livro de Iracema Macedo: Lance de dardos

Tereza Cristina Cunha

Seja qual for o seu credo, leitor, lance o primeiro dardo no poema “Bilhetinho”, prece singular, onde nada se pede ou agradece. Celebra-se, aí, uma tristeza luxuosa: tristeza de um ser já feliz. Diz, assim, o pequeno bilhete: Quando eu morrer/ mesmo em tristeza devastada/ morrerei da alegria de terem sido possíveis/ o amor a tristeza e a aventura de ser carne / em meio a tantas pedras. Feliz porque foi possível, e não necessário, surgir entre minério e mato, muito depois das lavas terem sido domesticadas em rocha. Luxuosamente infeliz, por desprezar o sossego e aspirar mais do que o calor das fogueiras e a fartura da caça. É que Iracema Macedo sabe que “a aventura da carne” não vai longe, não chega ao belo, se o barco repousar por inteiro. Uma parte dela dá vela ao vento, enquanto a outra ressona, atracada no cais: E velejar também velejarei/ Quando tudo estiver quieto neste porto/ é que o restante do meu barco/ já partiu e ousa (Velas).
Iracema sabe que poesia e desejo têm um destino comum: são dardos lançados rumo à experiência do obscuro e do ausente, muito mais arremessados pela louca aspiração ao invisível do que impulsionados pelo medo, pela fome, pela nostalgia. No entanto, não é uma ousadia sem temor que lança Iracema em sua aventura, nem lhe falta o respeito pelos obstáculos. Seus dardos também ensinam fugas e “um modo impecável de se abrigar da chuva”: Como se fossem de mármore/ os dardos duram dentro de mim/ perfeitos/ E aprendi com eles a lançar-me/ e aprendi com eles a ter medo/ a me esconder dos nomes/ fugir das luzes fortes/ e da insensatez dos automóveis”( Lance de dardos). Aprender com os dardos, para Iracema, é deter-se espantada, diante do familiar, sem penetrá-lo; não é aprender a devassar penumbras nem a perfurar sombras. Diante das coisas mais óbvias/ estanco/ como se fossem abismos/ Não aprendi a dar os passos decisivos/ Tenho desejado corredores longos na penumbra/ como nos antigos colégios ( A menina fantasma do internato). A impressão que nos dão estes corredores de Iracema é a de que eles não estavam lá, disponíveis para a aventura da carne. É mais provável que eles tenham sido concebidos pela paixão dos dardos que moldam, ao mesmo tempo, o existente que avança e o espaço que ele percorre, como o menino que, ao empurrar um pneu ladeira abaixo(“Happy Dale”), molda margens para o fluxo imperioso de uma alegria sagrada. A alegria é sagrada, diz Iracema, Tu não vês o rito de alegria na planta e mesmo na ferida, tu não vês um rito de alegria nessa ferida com bordas sagradas em tua perna?(“Happy Dale”). Não há dúvida que a tristeza luxuosa plasmada pelos dardos de Iracema é a alegria daqueles que sabem “afiar seus breus”, “aprontar seus escuros”, para “essa fina luz que dança”. Um vagalume? A carne, em meio a tantas pedras?

Rio de janeiro - RJ Abril, 2000.

Tereza Cristina Cunha é Doutoranda em Ciência da Literatura pela UFRJ.







Lance de Dardos: poesia e paixão

Nei Leandro de Castro

Os três livros anteriores de Iracema Macedo, todos de parceria com Eli Celso e André Vesne, já apontavam para a dimensão de sua poesia, para a beleza e a ousadia dos seus versos, com temas e palavras fortes, pouco usuais na poesia feminina que se escreve no país e, principalmente, na província. É provável que poemas como “Desencanto”, “Mêntruos”, “Clito” e “Arremedo” tenham melindrado leitores mais sensíveis ou os eternos moralistas de plantão. Mas o talento demonstrado por Iracema Macedo, desde Vale feliz (1991), está bem acima dessas susceptibilidades. Ela, antes de tudo, é uma guardiã que vela a paixão e a poesia como vela “as coisas da noite”, iluminada de sonho. Iracema ousa e alcança o que ousa, desde os seus vôos iniciais: “Ousarei com a vela ao vento/ e uma outra vela acesa dentro de mim.”
Na série que dá título ao livro surge com mais vigor e nitidez o arrebatamento amoroso que sempre esteve presente na poesia de Iracema. Nesses poemas parece ter havido uma sublimação do amor fati ( já lembrado por Nonato Gurgel na orelha do livro), ou seja, “o amor que diz sim e que faz de qualquer resultado dos dados uma possibilidade de vida mais bela e mais criadora”. Não por acaso, o amor fati é o tema da dissertação de mestrado que Iracema Macedo fez sobre Nietzsche.
Em Lance de dardos, esse amor vai ao encontro de um Saturno destronado e lançado à terra dos homens; depois se aproxima de Mercúrio, o alcoviteiro dos deuses, para apaziguar suas dores, ao experimentar o “esplendor da queda e a violência dos abismos.” Saturno se traveste de lobo-do-mar, de anjo, de lobo, e vem vindo, não adianta fugir ou se esconder. A bela poesia de Iracema registra: “Saturno me estende a mão e um cálice/ e é como se a vida chegasse/ silenciosa e indolor como os milagres.” Mais adiante, a poeta volta aos ritos saturnais, confessa que transgride tantas leis que já nem sente, para depois reafirmar o seu doce desvario amoroso: “Ah, Saturno, tu me brindas e me usas como queres nesta noite em que o terror está tão próximo do prazer e a beleza travestiu-se tanto de loucura”.
Saturno também pode ser um anjo decaído, um arcanjo louco, que aprendeu a incendiar os sentidos da poeta, que adivinha todos os seus desejos sob portas e vestidos. Por isso, só resta pedir “que me faças assim/ ínfima e sagrada/ muito mais pornográfica do que lírica/ muito mais profana do que tântrica/ muito mais vadia do que tua”.
O amor se esvai? O coração da poeta se cobre de nuvens sombrias, fica cheio de vespas e ela canta: “Um oceano inteiro não basta para calar no meu peito este murmúrio de tantas formas de ardor/ tantas formas de estar banida e só”. Segundo Oscar Wilde, condenado à prisão e à morte pelo amor, os corações foram feitos para ser despedaçados. Talvez valha acrescentar que os pedaços do coração se recompõem como as estrelas-do-mar. Depois de Saturno e seus sortilégios, depois de Mercúrio, que “acende espelhos e inventa silêncios”, o amor fati de Iracema Macedo se volta para o cotidiano dos mortais e sublima o amor imperfeito, num dos mais belos poemas do livro. A paixão está apaziguada, o corpo e a alma suportaram a “ventania dos diabos”, o desenlace vira enlace, o amor se veste de outras vestes. A poesia é a grande vitoriosa: “Quero o nosso amor a salvo mesmo que sejam vorazes os deuses que ousam matá-lo/ Quero nosso amor humano mesmo que eu tenha medo mesmo que seja frágil nosso amor de porcelana”. Na atual poesia brasileira não há registro de um equilíbrio tão perfeito entre paixão e expressão poética, construção de versos e reconstrução da alma sob aquele antigo e recorrente “fogo que arde sem doer”.

Tribuna do Norte, Natal -RN, 05 de Maio de 2000

Nei Leandro de Castro é escritor e publicitário.









Dardos que despertam o abismo

Pablo Capistrano

Nunca levei muito a sério esse papo poesia de gênero. Não encontrava motivos razoáveis para acreditar que o sexo interferia na linguagem. Teria de haver algo de orgânico, de palpável, que pudesse alterar a poesia: hormônios, enzimas, formação do cérebro etc. Shakeaspeare nunca me pareceu mais feminino ou masculino que Safo. Aliás masculino e feminino eram adjetivos que eu não conseguia adequar à poesia.
Eis que começo a mudar de opinião, forçado por fatos como, por exemplo, o livro Lance de dardos (Ed. Estúdio 53) de Iracema Macedo. Já conhecia o trabalho de Iracema de dois de seus livros anteriores, feitos em coletivo com Eli Celso e André Vesne, o Vale Feliz de 1991 e Gravuras de 1995. Nesses dois livros, a linguagem de Iracema já existia em potência, para ser bem aristotélico. De 1998 para cá parece que a potência ganhou forma numa linguagem poética madura e incisiva.
Quando estava lendo os poemas referentes ao período de 1999 e 2000, lembrei que Iracema já estava na altura dos vinte e nove anos, em pleno retorno de Saturno ( movimento astrológico que produz grandes alterações na personalidade e na vida das pessoas). Isso me fez pensar num dia em que discutíamos astrologia e que acabei falando para Iracema sobre esse tal retorno de Saturno, passamos boa parte da conversa especulando sobre o tipo de transformação pessoal que esse trânsito poderia causar na vida dela.
Saturno na astrologia representa o aprendizado, muitas vezes doloroso, que o tempo nos impõe. Saturno transformou a linguagem de Iracema, tornou-a madura, firme, cortante como a foice que Cronos carrega. Foi caminhando por essa maturidade poética que eu compreendi o que as pessoas querem dizer com “poesia feminina”.
Não tem a ver com o lirismo em si, mas com um tipo especificado de lirismo. Geralmente se diz: a Lírica é para mulheres ou homens apaixonados (que não deixam de ser terrivelmente femininos), o épico é para os homens, assim como a filosofia e todos os tipos de formalismo que privilegiam a frieza racional em detrimento do calor das sensações uterinas. Na verdade, acredito que exista um lirismo tipicamente masculino, cheirando a Vinícius e Tomás Antônio Gonzaga e um lirismo tipicamente feminino, anômalo, estranho e assustador, que desconstrói o universo bem ordenado de nossa prosa cotidiana.
Guardadas as devidas ressalvas estilísticas essa lírica me faz pensar em Ana C. e Hilda Hilst. São tempestades passadas a conta gotas. Criando expectativa e ansiedade. Após cada verso e cada linha a ansiedade da surpresa produz medo e às vezes um risinho nervoso de alívio. É assim que li Iracema. Com um pouco de medo.
Na ansiedade de entender as mulheres nós, homens, construímos imagens as mais díspares: desde a da santa piedosa dos cristãos até a portadora do julgamento severo e implacável dos judeus, que sempre aponta para o nosso interior. Graças a Freud, desistimos de entender esses abismos femininos, cheios de tempestades e represas explodindo, plenos de uma força cinética que desconstrói o mais poderoso fundamento lógico.
Iracema joga nesse time e a força de sua linguagem reside justamente em incomodar nossos abismos com esses dardos estéticos que são seus poemas.Se realmente existir uma lírica feminina, a de Iracema é a do wild side. Aquele lado onde a mulher se mostra completamente nua, com seu universo inquietante, líquido e profundo, como só as filhas de Eva e Lilith sabem ter.
Para aqueles que não acreditam em mim e acham bobagem misturar cromossomos, hormônios e enzimas com literatura, leiam a seguir e prestem atenção no modo como Saturno é desmascarado no auge de seu retorno:

Saturno veio colher as romãs
brasas no pomar
Vivo nua pela casa
leio cartas, fecho as portas
Saturno me espia pelas frestas
me sussurra nomes feios
vivo cheia de varais
lampiões e pássaros acesos
Parece que estou esticada entre dois abismos
entre dois homens
entre dois vendavais
Abro a janela
encaro o deus
me vejo nos seus olhos
me vejo dentro dele
Quando é que esses olhos irão me acordar?
Quando é que irão me levar?
Quieto no seu canto
Saturno me estende a mão e um cálice
e é como se a vida chegasse
silenciosa e indolor
como os milagres


Jornal de Hoje, Natal -RN, 9 de junho de 2000

Pablo Capistrano é poeta e professor de filosofia.










O discurso do corpo

( Anotações à margem de “Lance de dardos”, de Iracema Macedo)

Nelson Patriota

“O perigo é nascer, parir, carregar óvulos, útero. ser anônima, inquieta,
inatingível.
arder.
depois murchar, repleta de memória e céu.” Marize Castro

Se o corpo é um interlocutor privilegiado da poesia feminina, como ressaltou a poetisa Maria Lúcia Dal Farra ( ver “Seis mulheres em verso”, in Galo n. 6 – julho, 2000) a poesia de Iracema Macedo é, de certo modo, a confirmação da primazia desse discurso, como se nele se cristalizasse a essência do feminino, ou sua possibilidade de explicação.
Os poemas de Lance de dardos, reunião até agora da poesia de Iracema, são pródigos em discursos a partir da consciência do corpo feminino, com suas implicações, desde as mais ricas em sugestões eróticas, até aquelas que parecem só ratificá-las. É verdade que a própria natureza da sexualidade feminina, com seus ciclos exatos, sugerem uma riqueza de elementos que não têm equivalentes no mundo masculino, de sexualidade linear, retilínea, direta, como regra. É compreensível que quando o homem assuma o discurso do corpo, trate-o como um móvel, um meio previamente reconhecido, e não encontre, assim, motivos para interlocuções demoradas, preferindo interrogar o mundo objetivo à sua volta.
Contrastando com essa ‘simplicidade’ de motivos, o universo feminino ostenta uma riqueza de fenômenos de natureza psicossomática de grande força e respondem por boa parte do “segredo feminino”, dos seus motivos inconfessáveis, como o observou o Freud da maturidade. São temas-tabus. Não se prestam à poesia, facilmente. Sua presença, em certos momentos de Lance de dardos, é inconfundível, consignados que são por um caráter de extrema singularidade. É como se Iracema invocasse para si a isenção de Mozart ( para aproveitar uma imagem cunhada por Clarice Lispector em Água viva). A presença desses poemas corporais, descuidadamente disseminados no corpus de Lance de dardos, causa o paradoxal efeito desestabilizador de um arcaísmo num texto modernista. Ou vice-versa. Mas sendo não um livro, mas um conjunto de livros produzidos ao longo de uma década de poesia, Lance de dardos é um livro pródigo de surpresas e de uma extraordinária riqueza de temas.
Um desses temas é o corpo enquanto móvel de prazer auto-suficiente, narcísico. Como se lê nos poemas “Clito” e “Mênstruos”, por exemplo. No primeiro, Iracema escolhe como designativo de clitóris um ícone que o contradiz: uma abelhinha. Reza o poema: “o corpo sem essa abelhinha ia ser “meio sem gosto/que coisa boa esta carne/ com esta abelhinha dentro/que me leva pelos ares.” O mesmo tom percorre “Mênstruos”, desde seu primeiro verso: “Os lençóis estão limpos apesar dos meus mênstruos”(...) até o último: “apesar da cólica e do sangue que me molha.”
A exposição pública desses temas – a consciência plena da feminilidade- conferem a esses dois temas um lugar à parte na poesia feminina norte-riograndense contemporânea, a despeito das ousadias que animam a poesia de Marize Castro e Carmen Vasconcelos, por exemplo. Mas são ousadias de outra ordem, já assimiladas pelas novas normas da leitura. Não transgridem para além do que a norma sanciona.
Onde Iracema parece se compor com o normativo é na poesia amorosa. Mas um elemento de dissonância perturba a ordem habitual do poema. Em “Idílio”, uma hipérbole eleva a temperatura do poema ao paroxismo:

IDÍLIO

Entre notícias antigas e muralhas
construí com você
um amor feito alucinadamente de palavras
Meus versos seduzem os seus
seus versos aliciam os meus
Coloquei nossos livros juntos na estante
para que se toquem
e se amem clandestinamente
durante as madrugadas

O princípio da realidade( e da temporalidade humana) que percorre certos desvãos da poesia de Iracema Macedo cria outro elemento de estranhamento em sua obra. Nas cinco linhas de “Bilhetinho”, isto fica explícito desde o começo.

BILHETINHO

Quando eu morrer
mesmo em tristeza devastada
morrerei da alegria de terem sido possíveis:
o amor a tristeza e a aventura de ser carne
em meio a tantas pedras

Essa certeza perturbadora da vida como passagem é reforçada no poema seguinte, sustando a respiração da poetisa, como se lê:

SE OS OUTROS ENVELHECEM

Se os outros envelhecem
como dizer que não perdi a juventude?
Tardes como essas houve muitas
e um vivo fervor de bicicletas e borboletas
Quem sou eu para ousar essa juventude
através de um tempo que cansa o rosto do meu pai?
Quem sou eu para ousar a flor e usá-la nos cabelos?
Que mulher eu sou?
O tempo só cria devorando
e não posso ousar contra as dores do parto
Entre o tempo e o nada
onde espichar o leite dos meus versos?

A consciência de ser um ser- para-a-morte assume um tom de desvario nas obsessivas perguntas de “Carpe diem”, que se lê a seguir:

CARPE DIEM

Quanto tempo ainda
entre imbus verdosos
batatas fritas, coca-cola?
Quanto tempo entre retalhos, cacos
detalhes de higiene
pastas, papel, escovas?
Quanto tempo entre raízes
entre livros umbigos figos importados?
Quanto tempo ainda
entre tetos paredes assoalhos
entre taipas palha chão de barro?
Quanto tempo
entre passos laços aço?
Quanto tempo entre silêncio e desperdício
entre fome e ódio?
Quanto tempo ainda entre corpos e afagos?
Quanto tempo
antes do nunca, antes do mármore
antes da cinza?

Estes temas, porém não esgotam o elenco de motivos que enformam esse extraordinário livro de Iracema Macedo. Um apetite para a paródia e para o diálogo com a grande poesia – Manuel Bandeira, Carlos Drummond, Mallarmé, Clarice Lispector e Rainer Maria Rilke são apenas algumas referências iluminadoras de Lance de dardos – tornam esse livro um momento de extrema modernidade da nossa poesia. É, por essas razões, um livro incontornável.

Jornal O Galo, Natal- RN . Ano XII- n.10- outubro, 2000.



Nelson Patriota é jornalista e editor do Jornal “O Galo”.








Um pouco de poesia

Affonso Romano de Sant'Anna

Há poemas montados como ladrilhos
sem vida e há aqueles que fluem

Posto que o nome deste suplemento é Prosa e Verso, hoje é dia mais de poesia do que de prosa. E gostaria que vocês lessem simplesmente alguns poemas sem qualquer comentário. Mas para que nos acostumemos aos poucos, e de novo, com a poesia assim exposta, introdutoriamente direi duas ou três coisas.
Outro dia recebi um livro de uma poeta de Natal, Iracema Macedo. Não quis ler a orelha. Livro, às vezes, é melhor assim, sobretudo o de poesia, você abre logo lá dentro e sente num único verso, num único poema, se a criatura tem poesia na veia ou se aprendeu a fazer poesia, ou nem isso. Então, eu nem sabia que Iracema, que tem lá uns trinta anos, era moça letradíssima, tinha até feito a dissertação de mestrado – “Idealismo e amor fati na estética de Nietzsche.” E levei um baque logo no primeiro poema:

AS VESTES

“Enfrentei furacões com meus vestidos claros
Quem me vê por aí com esses vestidos
estampados
não imagina as grades, os muros
o chão de cimento que eles tornaram leves
Não se imagina a escuridão
que esses vestidos cobrem
e dentro da escuridão os incêndios que retornam
cada vez que me dispo
cada vez que a nudez me liberta dos seus laços ”

Há poemas, há poetas nos quais a gente sente que estão trabalhando com ladrilhos. Vão colando palavras dificultosamente, numa montagem inteligente, apurada, ao final da qual a gente diz: “É, está bem feito, mas falta vida”. Tanto Mário de Andrade quanto Nelson Rodrigues já diziam que a “inteligência” tem estragado a obra de muitos autores. O próprio Mário, às vezes, foi vítima disto.
Diferentemente, há poemas, há poetas que não guaguejam, mas cujo texto flui e nos conduz. É que nesses casos a poesia está soprando do imponderável. E, às vezes, a coisa pode ser tocantemente simples como nos versos de Iracema:

DANDARA

“Eu só acreditava em Drummond:
‘o amor chega tarde’
Não conhecia o amor que fulgura sem aviso
esse que se sabe proibido
o amor que já se sabe perdido desde o início
Eu não acreditava no impossível
vinha tão sóbria, tão cheia de medidas
não conhecia o esplendor da queda
nem a violência dos abismos”

Anotem. Não estou fazendo crítica literária. Estou lendo poemas com vocês. Estou lendo socialmente alguns poemas de uma poeta que ninguém conhece, a não ser a tribo dos potiguaras, lá no Rio Grande do Norte. E ao publicá-la aqui estou erguendo um monumento ao poeta desconhecido. Seu livro “Lance de dardos”, que reúne quatro opúsculos publicados desde 1991, vocês não o vão achar em livraria, porque o sistema, quer dizer, não é sistema, sistema é outra coisa, melhor dizer o esquema literário é perverso e nem sempre premia os melhores. Mas não é por isto que não vou citar essa Iracema, que nem conheço e que adoçou meus lábios com poesia.
Outro dia Nei Leandro de Castro, um dos caciques da tribo poética dos potiguaras mandou-me seu bom “Diário íntimo da palavra”. Ele que, entre outras publicações, tem um insólito livro de poesia erótica( “Era uma vez Eros”), enviou-me livros de outros bons poetas lá de Natal. Lembrei-me de outra colônia de bons poetas, lá em Aracaju, que Alberto de Carvalho apresentou-me no CD “A voz, o poema”.
Não, não vou citar nomes de poetas marginalizados. Isto já seria outra crônica.
Outro dia adverti numa entrevista, quando me perguntaram sobre essas três antologias de cem poemas/poetas do século XX, que se deveria fazer uma quarta antologia com o nome de muitos como Iracema. Seria o obelisco ao bom poeta desconhecido.
Não sei se ela vai desenvolver o projeto de uma obra poética. Estou apenas pinçando a poesia que sobrenada nesse arquipélago cultural cheio de ilhas de si mesmas exiladas. Poesia que dá prazer de ler.
E, para terminar, fiquemos de novo com a poesia de Iracema:


POEMA DO LOBO DO MAR

“Como proteger-me desse lobo que vem vindo
Em que ilhas poderei me ocultar
em que barcos ousarei fugir
desse lobo que domina os barcos e as ilhas?

Reúno roupas negras faca escudo
De que adianta enfrentá-lo do meu jeito
se ele me despe do jeito que ele quer?

Como proteger-me dessas ondas
de prazer que ele traz em suas brisas
De que vale feri-lo com meus versos
De que vale me lançar ao mar

Se não há como esconder-me de mim mesma
do exílio que sinto quando fujo
da vontade que tenho de ficar?”

Jornal O Globo. Prosa e Verso, 14 de abril de 2001




Poesia.net 193

São Paulo, quarta-feira, 13 de dezembro de 2006

Caros amigos,

Neste número, o poesia.net entra em seu quinto ano de circulação. Desde o boletim número 1, distribuído por e-mail em 12 de dezembro de 2002, centenas de poetas já passaram por essa modesta página semanal. Vê-la completar quatro anos é motivo de contentamento para mim. Porém melhor ainda é encontrar razão para acreditar que há, sim, algum lugar para a poesia e que faz sentido continuar por mais algum tempo. A todos que vêm acompanhando o poesia.net meus sinceros agradecimentos pela companhia nesta jornada.

...

Confesso que fico tomado de entusiasmo quando descubro um novo poeta. Descobrir, aqui, não tem o sentido pretensioso de “ninguém viu, eu vi primeiro”. Tem, antes a idéia de “como é que eu não havia notado?” É com esse tom de descoberta que trago a vocês a poeta potiguar Iracema Macedo, escritora que me foi apresentada virtualmente pelo poeta juiz-forano Edimilson de Almeida Pereira. Nascida em Natal, em 1970, Iracema leciona filosofia na Universidade Federal de Minas Gerais.

A autora estreou na poesia ao participar da coletânea Vale Feliz, publicada em 1991 em parceria com Eli Celso e André Vesne. Quatro anos depois, e como os mesmos parceiros, ela integrou nova antologia, Gravuras. Em 1998, marcou presença em nova obra coletiva. Ceia das cinzas, também na companhia de Eli Celso e André Vesne. Seu primeiro livro-solo foi Lance de dardos, que saiu em 2000.O trabalho mais recente de Iracema é Invenção de Eurídice, de 2004.

Todos os poemas incluídos neste boletim vêm do livro Lance de dardos. Trata-se de um volume que, na minha opinião, está entre o que surgiu de melhor na poesia brasileira nesta primeira década do século XXI. O título obviamente brinca com o “lance de dardos”de Mallarmé. Mas, ao contrário do que sugere, a refer6encia ao poema experimental do poeta francês não leva a uma poesia construtivista.

Os dardos de Iracema Macedo são atirados por uma poesia solar, emocionada e nitidamente feminina. Em literatura, quando se escreve o adjetivo “feminina”, corre-se o risco de conscientemente ou não, chancelar uma certa visão machista. Não é disso que se trata, aqui. Reafirmo o que disse no início: Lance de dardos é um dos melhores livros de poesia lançados desde o ano 2000. Creio que os poemas transcritos ao lado, por si sós, são capazes de provar isso.

Mas, feminina, sim. O que se descobre nesses poemas são vozes femininas. Leia-se, por exemplo, “O retorno de saturno”: “Saturno veio comer as romãs/brasas no pomar/ Vivo nua pela casa/leio cartas, fecho as portas”. Em “Idílio”, é também uma mulher que, apaixonada, ama clandestinamente por meio dos livros.

Mas atenção: não estamos falando de mulheres ingênuas. As múltiplas personagens femininas que habitam a poesia de Iracema são rebeldes, enfrentam o mundo e tentam molda-lo do seu jeito. Uma delas, atrevida, tem reposta na ponta da língua para o Anjo Gabriel: “peço-te afoitamente/ que me faças assim/ muito mais pornográfica do que lírica/ muito mais profana do que tântrica/ muito mais vadia do que tua.” Aqui, o anjo – dominador e masculino – é bem direito e conforme. Gauche é ela, a mulher, que impõe sua regras no jogo.

O poema do anjo Gabriel comunica-se com este outro, “O Horto”, que vale transcrever na íntegra:



O HORTO

Juazeiro, Juazeiro
o peso de tanta gente
vou levando na ladeira
imagens estilhaçadas
cacos de virgens Marias
santos decapitados
braços e pernas de gesso
corações de cera
partes que foram curadas
estilhaços de um guerra
mulheres vestidas de preto
dentro de mim vou levando
cruzes pesadas, romeiros
e uma capela de Santa Clara
acesa dentro do peito


O ambiente parece ser Juazeiro do Norte, cidade do Padre Cícero e de tantos pedidos às potências celestes. As “imagens estilhaçadas/ cacos de virgens Marias” seriam ao mesmo tempo os ex-votos e as próprias romeiras, carentes, em busca de milagres.

As personagens femininas desses poemas, sempre mulheres, vão desde a dona Chica da canção infantil “Atirei o pau no gato”até essas criaturas em brasa que abrigam nos braços a ventania de Mercúrio. Mulheres com “o coração cheio de vespas”. Eis um lirismo que, embora amoroso, não tem o dom de acalentar, mas de ser incômodo. Talvez uma das mulheres de Iracema Macedo explique tudo. É Carmen. Auxiliar do atirador de facas, “ ela recebe os golpes um a um/ Arremessos de perda, luxúria, ciúme.”

Um abraço de aniversário, e até a próxima.

Carlos Machado





A vida num lance de dardos

Viviane Milward Azevedo

http://jornalaldrava.vilabol.uol.com.br/artigos/



Como se fossem de mármore
Os dardos duram dentro de mim
perfeitos
E aprendi com eles a lançar-me
E aprendi com eles a ter medo
A me esconder dos nomes
Fugir das luzes fortes
E da insensatez dos automóveis
Aprendi com os dardos
Uma espécie de vida iluminada
Uma sutileza para arremessos
Estratégias de ataque
Fugas
Um modo impecável de me abrigar da chuva
E aprendi também uma crueldade
E uma coragem toda feita de começos.
(MACEDO:2000,36)



O poder de libertar o corpo e a alma, dançando com as bacantes, em pleno delírio de sacra orgia. Este que se atenua ao defrontar-se com a possibilidade do amor tardio, tornando a mulher refém do homem amado. Refém e pitonisa de histórias passadas e futuras, já que o presente só o amor conduz. E nesse lançar de dardos tirar a lição para a vida de uma coragem toda feita de começos.

Essa é a magia do livro de poesias de Iracema Macedo. Magia nordestina que, agora, se instala nas paisagens mineiras. Para nosso prazer, aldravistas ou não, Iracema veio lançar seus dardos por aqui. Dardos delicados, dardos agressivos, como se fossem de mármore causam um arrepio na espinha. Dardos que em Minas, nos põem perante o risco de não mais vivermos sem essa palavra cantada, cheia de cores do nordeste, do Brasil, do mundo. Mundo mulher, mundo menina, realizado pela palavra coisa, palavra som. Esse é o tom do livro de Iracema. Essa poetisa que traz a poesia desde o nome, conseguindo transformar em viagem poética toda a sua vivência fêmea do mundo macho, sempre a procurar o seu porto. Mostrando um eterno desejo de repouso, de âncora:



Cada vez me afoito mais
E não encontro margens
E não encontro porto
Só encontro tempestades
Onde atracar
( MACEDO:2000,26)



A brincadeira de signos e sentidos inicia-se na capa, a qual representa delicadamente um dardo, leve, suave, mas que sabemos poder perfurar os vários mundos de uma mulher, o coração de vários homens. Dardo que pode furar o ventre da vida, mas que também capacita no jogo sutil dos arremessos de palavras e sentires. Mas, não se engane o leitor com a aparente simplicidade de seus versos, por trás dessa roupagem simples há uma complexa riqueza. É preciso embarcar de olhos bem abertos com toda a sensibilidade e percepção de pele:



Matei o gato, mamãe, matei o gato
mas o gato, mamãe, não morreu
passou o resto da vida
atravessando a sala
ensanguentado
Dona Chica não se espantou
e disse em tom muito sábio:
Esse bicho, Marília, não morre nunca
ou você foge ou finge suportá-lo
(MACEDO, 2000,49)



Iracema vem comprovar que não existe uma escrita só de mulheres, como afirmam alguns curiosos literários, pois sua escrita não marca o gênero, só a vivência do corpo, da alma, do sexo. O sujeito poético que se mostra nesses versos é um ser assexuado: mulher-homem-mulher. Há a permissão para o assujeitamento feminino perante a masculinidade do homem amado e desejado. Sujeição superficial, que domina a fera-homem. Mulheres que se fazem dominadas para conquistar seus homens. Fazendo-os fortes mesmo na fragilidade:



Quando o homem sobre mim
Fizer a cara do gozo, estarei velando
Velarei como uma viúva, como uma freira
Como uma puta
(MACEDO, 2000,111)



A poesia de Iracema é um passeio pela vida da mulher frágil, forte, indefesa e fera. Mulher que se espanta com a pressa do tempo, mas que se entrega ao prazer do corpo e da alma, se libertando de preconceitos feministas ou machistas. Ela não busca uma doutrina, uma falsa ideologia-mulher, simplesmente se mostra como se vê. Um ser de lado diversos, que se deixa prender pelas armadilhas do sentir, mas que é audaz o bastante para devorar a carne de quem a fere. E essa força ela expõe quando nos conta que enfrentou furacões com vestidos claros ou quando recorre a Drummond para comprovar os desvarios da chegada do amor maduro.

Passear pelas trilhas de Lance de Dardos é participar de um ritual de vida. E se predispor a encontrar a si mesmo, sem medo dos arranhões que esse passeio possa causar a nós leitores. Esse livro é um brinde à vida, é um convite à busca do ser feliz e inteiro:



Há tantas danças e os rituais. Tu não vês o rito de alegria
na planta e mesmo na ferida, tu não vês um rito de alegria
nessa alegria com bordas sagradas em tua perna?
(MACEDO:2000,109)

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Amor e guerra I

Penso em guerras vividas pelos seres, doces invasões dos nossos amores, dos amores dos outros, dos nômades e errantes nessa vida. Feridas cálidas que cobrimos com pétalas. Com delicados esmaltes cobrimos nossos profundos ferimentos. O tempo fere, o prazer fere, tudo que é vivo fere. Às vezes a guerra mais amorosa pode acontecer numa simples noite de inverno e não seremos conderocadas por isso.

Amor e guerra

Texto de um personagem masculino de Anais Nïn, do livro " Uma espiã na casa do amor"
" Eu dormia com a guerra, antigamente todas as noites a guerra era minha amante. Tenho profundos ferimentos de guerra em meu corpo, como você nunca teve, uma proeza militar pela qual jamais serei condecorado".
Baubo - Mitologia grega
Segundo a lenda, a deusa Deméter estava desolada com o desaparecimento de sua filha Perséfone. Em sua peregrinação e tristeza encontrou Baubo, personagem mitológica que soltava uma risada pela vagina. Deméter curou-se de sua tristeza através do poder dessa alegria. A lenda continua com o desfecho do rapto de Perséfone por Hades, mas, a meu ver, o mais instigante nessa estória é o poder feminino de suscitar a força, o riso, a intensidade da vida mesmo nas circunstâncias mais adversas e também a ideia de que uma força feminina pode curar outra, nem sempre a feminilidade é signo de rivalidade. Mulheres, amem-se umas às outras!
"Que seja considerado perdido o dia em que não se deu uma risada"
Nietzsche parodiando Chamfort

domingo, 23 de maio de 2010

Ciclistas

Liberdade ? perder as fotos, as chaves
saber perder o dente, o amor
os amigos, os filhos
não atar-se, não atear-se
não afoguear-se
Se for assim esse gelo, essa frieza
não quero
prefiro os monstros que me cercam
as máscaras, as lágrimas
nossas duas bicicletas inexplicáveis

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Poema de Manuel Bandeira:Rondó do Capitão

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Bão balalão,
Senhor capitão,
Tirai este peso
Do meu coração.
Não é de tristeza
Não é de aflição:
É só esperança,
Senhor capitão!
A leve esperança,
Senhor capitão!
A leve esperança,
A aérea esperança...
Aérea, pois não!
- Peso mais pesado
Não existe não.
Ah, livrai-me dele,
Senhor capitão!

8 de outubro de 1940
 
Manuel Bandeira 

Poema de Carlos Drummond de Andrade: Notícias amorosas

                                                               Remedios Varos
Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este é o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, o beijo tácito, e a sede infinita. 
Carlos Drummond de Andrade

Poema de Carlos Drummond de Andrade: O homem: as viagens

O homem, bicho da terra tão pequeno
Chateia-se na terra
Lugar de muita miséria e pouca diversão,
Faz um foguete, uma cápsula, um módulo
Toca para a lua
Desce cauteloso na lua
Pisa na lua
Planta bandeirola na lua
Experimenta a lua
Coloniza a lua
Civiliza a lua
Humaniza a lua.
Lua humanizada: tão igual à terra.
O homem chateia-se na lua.
Vamos para marte - ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o homem desce em marte
Pisa em marte
Experimenta
Coloniza
Civiliza
Humaniza marte com engenho e arte.
Marte humanizado, que lugar quadrado.
Vamos a outra parte?
Claro - diz o engenho
Sofisticado e dócil.
Vamos a vênus.
O homem põe o pé em vênus,
Vê o visto - é isto?
Idem
Idem
Idem.
O homem funde a cuca se não for a júpiter
Proclamar justiça junto com injustiça
Repetir a fossa
Repetir o inquieto
Repetitório.
Outros planetas restam para outras colônias.
O espaço todo vira terra-a-terra.
O homem chega ao sol ou dá uma volta
Só para tever?
Não-vê que ele inventa
Roupa insiderável de viver no sol.
Põe o pé e:
Mas que chato é o sol, falso touro
Espanhol domado.
Restam outros sistemas fora
Do solar a col-
Onizar.
Ao acabarem todos
Só resta ao homem
(estará equipado?)
A dificílima dangerosíssima viagem
De si a si mesmo:
Pôr o pé no chão
Do seu coração
Experimentar
Colonizar
Civilizar
Humanizar
O homem
Descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
A perene, insuspeitada alegria
De con-viver.

Carlos Drummond de Andrade

Poema de Cecília Meireles: LUA ADVERSA




Tenho fases, como a lua
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e que vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...


Poema de Cecília Meireles

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Contagem regressiva

Daqui a vinte dias
ela vai aterrissar na sua primavera
sal sobre neve
derretendo as pedras
e esse seu coração cortado em pétalas

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

oferta

só posso me dar, só posso me oferecer
não tenho telas, não pinto quadros
nem portos, nem méxicos, autorretratos
mas estou inteira quando  vejo e fotografo
a exposição de Arthur Bispo do Rosário
veleiros carrosseis
colheres pentes finos canecas de alumínio
sou eu a própria cama de Romeu e Julieta
onde o amor, maior ainda que a arte,
(manto traiçoeiro de Penélope)
violentamente se faz e desfaz

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

achados e perdidos

no lixo orgânico casca de bananas
fiapos de cabelo
arquivo de três dias da semana
restos de culinária vegetariana
cascas de cenoura
soja hidratada com pingos de molho shoyu
exalando a cor gostosa do café

no lixo reciclável
notas do supermercado e boticário
carteiras de cigarro
mesmo que seja médico,
mesmo que seja mágico, ator
atleta, corretamente gay descomplicado

quem não se viu ao contrário?
confuso, alterado por dioniso,
atacando a mulher errada
desejo de sangue latino
dos secos e molhados
rompendo tratados
traindo ritos
sem se sentir preso nem vencido

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

as passageiras

enquanto uma trazia os livros de porto
a outra levava tortas para os filhos
chapeuzinho vermelho às avessas
trocando o bosque pelo avião

Indo para Juiz de Fora
depois do voo ainda tinha um ônibus
e os doces congelados para viagem
resistindo intrépidos na bagagem de mão

chocolates com palavras
risos de mães voadoras
bruxas com suas vassouras
a mais de mil pés do chão

poltronas L I F E
uma morena e uma loura
e um homem de negócios
desarvorado, aturdido
esquecendo o nome das coisas
engenheiro ex-pragmático e sisudo
começou a ficar muito risonho
prensado, apertado
no meio das duas doidas

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

partos de Zeus

  quero a calma desses livros aí na estante
      arrumados, comportados
fingindo que não estão na pândega

mas os cabelos soltos das bacantes
            pelo chão
   a poeirinha não varrida
falam com gosto das tuas filhas

harém de leão com seus filhotes
      com suas leoas ruivas
        lar da pá virada
onde o escritório em ordem disfarçada
      oculta a luxúria sem luxo
de quem respira ( anfíbio) por palavras

varando sem pudor as madrugadas
   com luzes tímidas, passos cuidadosos
      notívago, lobo e pai
        nas ruas de florença

todo poeta é um perigo de nascença

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

as saudades

você podia perder
as pessoas que conhecia
no ônibus, no voo, no trem

você  podia perder
os amigos que iam embora
as cidades que se afastavam
 ilhas  visitas hóspedes

inquietantemente próximos
presentes e claros demais
já não se perdem mais