segunda-feira, 19 de novembro de 2012

A beleza má



                                                                       



    Após algumas leituras do filósofo francês Gilles Lipovetsky,  autor de livros  como A terceira MulherA era do vazio, Sociedade da decepção,  sugiro alguns pontos de conversação  sobre o pensamento da feminilidade no cenário do pensamento  a respeito do sujeito contemporâneo.

    Lipovetsky insinua algumas imagens para pensar o feminino. Na fantasia elaborada pelos homens e seus mitos, a  primeira mulher aparece na antiguidade associada ao caos, ao funesto, ao trágico, ao terrível. Força que amedronta os homens, celebrada pela fecundidade mas com uma beleza associada à maldade, não é ainda de  modo algum o belo sexo, a imagem de ternura e bondade que se consolida no Ocidente, segundo ele, a partir das pinturas renascentistas.

      Essa seria a “segunda mulher” sagrada, cantada pelos poetas, celebrada pela arte na fantasia masculina. Além dessas duas imagens do feminino que, de alguma maneira, ainda podem perdurar na cultura atual, hoje teríamos uma terceira mulher, cada vez mais inventada por si mesma, mais distante da criação masculina e mais criadora de si própria. No entanto, envolvida no cenário da subjetividade contemporânea cujos desafios partilha igualmente com os homens.

    Apesar  dos louvores aos encantos femininos, nas representações da Grécia antiga a beleza viril teria uma marca superior  à beleza feminina, inclusive a famosa Vênus de Milo tem algo de andrógino. Mas  sendo essa beleza entendida como beleza má,  a mulher está longe de se colocar no alto das representações de excelência da cultura. Helena enseja a guerra de Troia, Pandora  solta todos os males para a humanidade. As artimanhas de Afrodite, os ciúmes terríveis de Hera, a maldição da Medusa, o caos apaixonado representado por outras figuras como as bacantes e Medeia. Tudo isso nos mostra a mulher ,em geral, representada como astuciosa, mentirosa, um perigo que se insinua e se oculta sob aspecto sedutor, portadora da desordem, sua única dignidade é a procriação, nada de grandioso  ela traz à civilização. Essa beleza não poderia ser cultuada com a mesma ênfase que a beleza viril, pois é pérfida, nefasta, ardilosa. E, posteriormente, na representação cristã, Eva é a autêntica porta do diabo.

                                                                 Botticelli                                        

     Na cristantade, só a virgem Maria cujo culto e cujas representações iconográficas se intensificaram a partir do século XII possui a inocência da beleza, mas ela é cultuada como virgem e mãe de Cristo muito mais do que como mulher. A mulher na arte medieval continuaria sendo representada como raiz do mal, como “ arma do diabo”. Para se  emancipar dessa  tradição de maldição seria preciso que a própria arte tivesse uma finalidade não mais religiosa e que a beleza feminina ganhasse outro significado.

      Segundo Lipovetski, é a partir da Renascença que a mulher ganhou efetivamente os contornos do que poderíamos então chamar o belo sexo associado à perfeição moral. Beleza e bondade feminina se conjugam então como aspectos gêmeos de uma mesma realidade. Ainda que a primeira mulher portadora da malignidade e da desordem selvagem não tenha deixado de habitar o imaginário cultural, inicia-se o reino da prioridade da beleza feminina. Basicamente na criação dos poetas e dos pintores sem que isso significasse efetivamente uma promoção social e intelectual.

                                                                    Tiziano
     
  Nos séculos XV  e XVI , marcados pelo humanismo, a beleza das mulheres passa a ser estimada e admirada como elevação espiritual , a vênus de Boticelli ilustra de modo exemplar essa nova  afirmação da beleza feminina. Lipovetsky escreve:

 “ Vênus substitui a virgem. Com a ressalva de que lhe toma emprestados os traços específicos, a pureza, a doçura celestial. Aérea, de uma graça linear e fluida, a Vênus do pintor florentino está impregnada de pudor, de vida eterna, de uma expressividade comovente,  seu rosto se assemelha mais a uma Madona do que ao das deusas antigas.”

       Em outras pinturas, as Vênus deitadas nos fazem pensar em uma mulher cujas forças terríveis foram apaziguadas,  diferentemente da beleza meduseia e das deusas que se vingavam de quem via sua nudez, como Atena se vingou de Tirésias cegando-o,  a mulher deitada e adormecida pode ser contemplada na pintura, é a representação da tranquilidade, da passividade  e brandura. Maneira de torná-la acessível aos sonhos dos homens. Exaltada nos círculos cultivados e ricos, a cultura do belo sexo se instalou mas não se universalizou. Para o pensador francês, durante cinco séculos, essa cultura permaneceu elitista e aristocrática.

                                                                    Manet
                                                        
     
    No século XIX, com a literatura decadentista volta a ter relevo a mulher maldita, funesta, bela  e impura. Personagens como a cigana Carmen ou a beleza do mal em Baudelaire voltam a acentuar a beleza demoníaca da mulher associada ao trágico, à perversidade e à morte, levando o homem à perdição e ao caos. Assim como a beleza celeste a beleza maldita de vez em quando reaparece no cinema com o estilo das vilãs  e da beleza vamp. Mas o que sobretudo passa a ter vigência  e nas representações culturais do século XX., segundo Lipovetsky, a partir das décadas de 40 e 50 é um novo estilo: A beleza pin-up muito mais lúdica que tenebrosa, muito mais destinada aos amores sem conseqüência que às paixões devastadoras, presentes nos calendários, nos painéis publicitários, no cinema. Esbelta, elegante, saudável, sorridente se parece mais com uma boneca brincalhona, cheia de vitalidade jovial, afastou-se de qualquer vínculo com o terrível e o trágico. Beleza  cuja visão mais eloquente é Marylin Monroe, embora ela mesma entrecortada por seus próprios dramas. Como se o poder terrível da beleza feminina tivesse se interiorizado e se voltado contra as próprias mulheres.    
 
  E agora nos vemos diante do boom da beleza, o culto do belo sexo entrou na era das massas, perdeu sua raridade e invadiu a vida cotidiana, democratizou-se e tomou conta da vida das mulheres em geral. Vivemos a febre de um ideal de beleza-magreza-juventude e algumas feministas chegam a pensar em um contragolpe: no momento em que as mulheres se libertaram de coerções sexuais, religiosas, sociais, domésticas, estariam de novo aprisionadas. Após a prisão doméstica, a prisão estética seria nossa condição. Porém, segundo Lipovetski mais que uma desforra estética machista, a nova situação da beleza exprime mais que tudo a tecnização do real, o triunfo da razão que caracteriza a modernidade tomou conta também da aparência, tornando-a passível de controle e posse, atingindo embora em escala menor, também os homens.

    Como já mencionei,  ele analisa que a beleza arcaica que amedrontava os homens hoje pode ter se tornado uma forma fantasma de amedrontar as próprias mulheres. Vivida hoje mais como coerção ela se instalaria numa espécie de totalitarismo, de biopolítica muito condizente com todas as prescrições relativas ao corpo. A terceira mulher emancipada, criadora de seu próprio destino, passa a ser talvez também um desafio para as mulheres diante dos impasses das coerções atuais da mídia-publicitária-democrática. E aqui homens e mulheres se deparam com a subjetividade contemporânea delineada por Lipovetsky em outros de seus livros como um sujeito deserto.        
       
                                
                                       
 
Nada contra a beleza pin-up, contra a vida confortável e saudável. Podemos ser beneficiados pela técnica mas podemos também manter acesa a inevitável dimensão trágica da vida. Me soam bem os versos de Paulo Leminski quando nos diz  que um homem e, no nosso caso, uma mulher com uma dor é muito mais elegante.
         

domingo, 18 de novembro de 2012

Camila

Camila, eu te amo
só vivo pra você,
os filhos, o  táxi e o lava-jato
deixa dessa wave
já aprendi a dizer
não bata a porta, please
sou homem trabalhador
faço aspiração simples
dupla aspiração
polimento com cera líquida
polimento cristalizado
troco pneu que é uma coisa
vamos pro motel dreams
tem cinco corações na propaganda
nós e nossos três filhos
tô cheio de amor para dar
Camilinha, deixa disso
manera comigo
Assinado: Wellington

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

GPS

favela buraco quente
favela coreia
favela indiana
morro da cruz
morro da casa branca
morro dos prazeres
morro quieto
morro do telégrafo
morro da liberdade
morro da providência
favela dona marta
favela do borel
favela conjunto residencial
dos servidores municipais
favela bela vista da pichuna

favela avenida
favela tremendê
favela céu azul
morro do dendê
morro do alemão
morro da baiana
favela mangueira
morro do bananal
favela babilônia
favela cerro corá
favela guararapes
favela borda do mato
morro dos cabritos
morro dos macacos
morro dos urubus
ladeira dos tabajaras
favela do rato
perto da rua iracema

domingo, 11 de novembro de 2012

parede, parada, pandeiro

a mulher anda doida comigo
achando que eu tô atrás de piranha
só porque toco pandeiro
ganho cachê de setenta reais
e ela não pode ir
tá querendo me bater
não fala nada não que ela bate mesmo
me bater é mole
quero ver é pagar minhas contas
fui do tráfico, da vigilância
capoeira na terra firme
agora estou na construção civil
tenho cartão de crédito
foi a pior coisa do mundo que inventaram
tô  todo endividado, mas hoje é domingo
bebo um pouquinho, fico embrasado
internet? não uso essa parada não
a mulher tá vindo aí, fudeu, fui
depois volta aqui que eu vou
arrumar uma parede neurótica
para você mandar um poema
valeu ?

domingo, 4 de novembro de 2012

Calipso

Quando voltavas à tua casa
era de mim que partias
eram minhas as ventanias

Invoquei tormentas
potestades marinhas
qualquer coisa para quebrar teu rumo

Mas uma frágil canoa
foi mais forte

Eu conhecia feitiço, gozo, beleza

Nada que impedisse
um homem de um regresso

virei uma ilha, estilha, estame
uma fêmea estéril entre as ondas

E nem sabia como ser errante
para encontrar uma pátria
para inventar um porto
onde enterrar tua perda



Poema publicado em Invenção de Eurídice, 2004.

sábado, 3 de novembro de 2012

Dioniso diante de Apolo

Agora que acalmaste meu tornado
e que aceitei tua flecha
sobre a minha carne

Agora que me fecundaste com a medida
e que me deste margens
Agora que pousaste a mão
sobre o meu medo

Vês como as palavras nascem de mim
pausadas
e como tornei-me brisa
ateada sobre o pranto?

Desde que me concedeste tua máscara,
deus solar,
a noite que eu trazia
perdeu o gume terrível

Vem, amigo, vem ver
como, mesmo diante do sangue,
tornamos bela
a dor para esses gregos



Poema publicado em  Invenção de Eurídice, 2004