quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Penélope



Se me chegasses no fim desta tarde
eu queria ser outra
não essa estranha que sou em meio à chuva

Se me pudesses ver no fim da tarde
eu fugiria
com medo que minha tristeza te assustasse

Se soubesses o que passo
eu diria: não é verdade

Iria encontrar um jeito de enganar-te
e disfarçar-me

Mas jamais, jamais
deixaria que me visses
sem que a fascinação me abençoasse

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Anúncio de Antiquário

Aceito toda forma de dor
Guardo os cacos, os fracassos
Coleciono toda espécie de trapo
baús, lustres, quadros
bibelôs despedaçados

Até navios desaparecidos
guardo

Aceito cores de todos os retalhos
todas as roupas vividas
chapéus de gente antiga
relógios, violas, rádios

E os desejos perdidos
debaixo dos guarda-chuvas
risos que ficaram presos
dentro dos portarretratos

Aceito o que foi pisado
mutilado, abandonado
Aceito, como um oceano,
toda forma de naufrágio

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Canção da mulher que virou barco

Transgrido tantas leis
que já nem sinto
Entro em um mar de águas-vivas
que ardem, ardem, ardem
mas nem doem
parece que me alisam
com seus pelos frágeis

Cada vez me afoito mais
e não encontro margens
e não encontro porto
só encontro tempestades
onde atracar

Nesse excesso de sal
nesse mar escuro em que me perco
me iluminas com o teu desejo
me serves de farol quando anoiteço
e me guias me guias me guias
jorrando tua luz
sobre meus seios

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

O Chafariz

Parece que saí de algum sonho, de alguma caverna
de algum lugar inóspito e aquecido
Imobilizado feito os corpos de Pompeia
virei uma estátua de cinza

Sou uma miragem entre os edifícios
mas tenho a realidade dos fantasmas
a errância dos bardos
a necessidade dos mendigos

Minha imobilidade é um artifício

A todo tempo oscilo
entre a inércia do meu corpo
e a fluidez do rio que abrigo

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Pequeno ensaio sobre dobras

                                                                    " Mulher é desdobrável, eu sou."
                                                                          Adélia Prado


Não mexo mais em feridas
Quero as dobras
das ondas, dos panos, dos calcários

Deixo lençóis fechados  no armário
Em vez de armas e espinhos,
guardei as dobras nos jarros

Em vez de farpas guerreiras,
desdobramentos delicados
transbordam por todos os lados                  




Poema publicado no livro " Um olhar para os detalhes". Org.da poeta e professora Maria Dolores Wanderley. Rio de Janeiro: Editora Interciência e Petrobras, 2010.p 67                                                  

O afogado

As mãos apertadas
os lábios roxos
o corpo declinando aos poucos

Agora um lago imenso me aguarda
e rogo aos deuses dessas águas
que não me deixem perder
o intenso encanto dos funâmbulos e das fadas