quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Destino

Matei o gato, mamãe, matei o gato
mas o gato, mamãe, não morreu
passou o resto da vida
atravessando a sala
ensanguentado
Dona Chica não se espantou
e disse em tom muito sábio:
Esse bicho, Marília, não morre nunca
ou você foge ou finge suportá-lo

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Diana

Ele sabe os tons de esmalte que ela usa
os brincos e joias que ela tem
brincos de ouro fosco e círios raros
colar amarelo fervido em pérolas

Ele sabe por onde ela prende seus cabelos
escritos em todas as partes
Cabelos mais longos que as folhas da palmeira
longa cabeleira, juízo curto

Mas ela curte tanto ter juízo
curte os cabelos curtos dos homens que ama
curte paixões que alucinam
as paixões que fogem e voltam

Sacerdotisa de Tupã
abençoa tudo com licor
Lábios de mel para esse mundo às vezes sem cores e tão cru

Ele sabe os tons de esmalte que ela usa
por onde ela acende suas chamas
e os medos e coragens que ela tem

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Vestidos

Os vestidos eram longos demais
estendidos no presídio
impossíveis, altos, inatingíveis
encasulados nas janelas do edifício
nunca os alcançaria

Mas o sol, esse sim, visível, possível,
estende seu reino
Luz que atinge os ossos, os pulmões, as veias
Clareza através da qual tudo se lava:
ruas, risos, palavras

sábado, 22 de janeiro de 2011

Dr. Fausto

                                            " Filosofia, leis e medicina
                                              Tudo, tudo estudei com vivo empenho!  
                                               Mas conheço que nada nós sabemos!
                                              (...)Por isso me entreguei todo à magia..."
                               Fausto, Goethe

Enigma que tento adivinhar com meu nariz e tranças
Vejo frascos de tinta sobre os livros
Sinto o cheiro do fogo
e a polidez dos seus gestos contra minha histeria

Meu desejo: nuvens fortes, temporais,
sandálias muito frágeis
para pisar esse chão de chumbo

Tento o equilíbrio da fantasia
contra essa realidade fria

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Estação

Grama que nasce em ferrovias que já terminaram
entre os trilhos e os dormentes
meu uivo instalo
Penso em trens grávidos de grãos
sitiando minha casa
Vidraças e cortinas se abrindo
para que eu possa envolvê-los
com minha força e dança
com minhas finas mãos

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Morro da Forca

Minha coragem me deixará leve
suspenso entre olhares abismados

Pela última vez ouço o vento
Basta uma corda, basta um salto

E nunca mais as igrejas
e nunca mais essas ruas
e nunca mais a volúpia do sol
sobre minha carne

Talvez seja só um exílio
uma leveza erguida sobre as pedras
um modo desconhecido de ser pássaro

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Um canto de sereia

Ulisses e as sereias




Me pergunto com que roupas e sandálias
chego até você
incendiada pelos seus navios

As ondas do meu desejo nos sustentam
espalhadas e espelhadas
em cada fio dos meus cabelos

Demônio do mar,
sem medo da canção das deusas,
Guerreiro dos cabelos cor de sol

Como enfrentar seu gosto pelos vícios
pelo jogo astucioso do combate
Vencedor de Troia, como eu poderia me perder?

Não adiantam os feitiços, nem os luxos,
nem os lixos onde atiro o que sobra
da abundância dos meus pelos,
das minhas unhas, dos meus beijos

Me pergunto com que roupas e sandálias
chego até você
Demônio de Troia,
Como poderei vencer?

Carta para Elizabeth Bishop



Há fantasmas, sim, cercando a casa
e bichos mortos e cães furiosos
Mas há também bons espíritos
aterrando o medo
e o desejo louco de viver feliz
numa cidade noturna acesa contra tudo

sábado, 15 de janeiro de 2011

Treliças

Acabei o namoro com teus olhos
O que esperar da luz entre treliças?
Chove a cântaros em Vila Rica
e a janela está fechada há séculos

De que adianta te encontrar nas ruas?
Terminei o namoro com tua alma
Cortei as cordas dessa lira

Havia pássaros entre nós dois
segredos escorriam sem paz
pelas águas perdidas

Mas agora há sossego afastando nossas vidas
Chove, chove a cântaros em Vila Rica
e nunca mais molharemos os sonhos
na mesma bica

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Penas de uma casa em cinzas

" Traga-me um copo d'água, tenho sede."
              Gilberto Gil



É óbvio que anoiteceu
está registrado em fotos
em minas, em mapas
Não posso trazer de volta o passado
imitando a voz dos mortos
Não posso devolver sua mãe,
sua filha, sua falta
O que há por dentro são gambiarras
madeiras úmidas, telhas e vidraças quebradas
A vida gotejando no balde
e a caixa de amianto vazia
de onde espero toda água possível
para o chão limpo e claro que preciso

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Leda e o cisne

Fernando Botero




Desisti de esperar teus signos macios
a mansidão com que amparas
as quedas sem remédios

Desisti de querer te afrontar
de usar vestidos para te iludir

Agora uso essa túnica simples
os cabelos quietos
a forma mais exata e comum

Ousadia seria esperar que me ferisses
e me espetasses os olhos com teus dramas
e me convidasses a dormir em tuas chamas

domingo, 9 de janeiro de 2011

A fuga de Io



                                                         para Linda Nemer


Eu vinha tonta de mar
e desaguei aqui
entre varandas estreitas
e pontes de suicidas
Cheguei depois do ouro dos poetas
Bebo no cano de ferro do chafariz
Vim para amar o que ficou
sabendo que são restos
Eu vinha encandeada pelo sol
e desaguei aqui
porque a dor não escolhe
a escuridão com que vai se cobrir

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Lorena no século XIX

O professor amava Lorena
tão rítmica  graciosa
O lampião se acendia junto às paredes antigas
e iluminado o latim se oferecia às línguas
mas fugia o latim, esse danado,
desertava da vida quando olhos
de mestre e aluna se encontravam

Houve latim algum dia? pensava o professor.
Não, nunca houve
Inventei essa língua só para amar Lorena
É a minha ponte para seus olhos