quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Paixão em Creta

Evite ruas escuras
riscos desnecessários
rotas retalhadas
atalhos
passos descompassados
bordas que não se encontram
margens que não se acham
Evite
ou realmente se entregue
se quebre
entre no labirinto do minotauro
(novelo, cara e coragem)
mesmo que sair ileso
seja raro

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Na Vila Operária

Sobre as escadas úmidas do beco
o anúncio:
Faz-se bolo, suspiro, pavê
alugam-se também golpes
contra pavores, perdas
voragens
Vende-se gelo de chuva filtrado

Faz-se vento para outras
idas e viagens
E para o tempo escuro:
Temos também sorvete de luz
e claridade

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

abrigo em noite de inverno

ofereço partes de mim que não existem
olhos que você não vê
um pouco de minha luz para você
deitar-se
a força branda que tenho
na voz que você não escuta
ofereço minha companhia
meu casaco, meus sapatos
algo que agasalhe
toca, luvas, boné
o guarda-chuva perdido
a lâmpada, o aquecedor
aceito que pernoite uma vez só
talvez isso suavize sua dor
se quiser mais
pode vir totalmente
invisível
tantas noites quanto queira
para debaixo do meu cobertor

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Viagem à Ilha dos Lençóis

Que posso a não ser te seguir
e ser gerada por ti
na tua fome encantada
de sexo e veleiros
e viagens e noites a fio
procurando um rei na ilha escura ?
Que posso eu, nesses dias, nessa ilha
senão amar-te, amar-te
e ouvir os tambores ao teu lado ?

É sobre mim que esse deserto arde
e cego na claridade é o meu amor
feito os albinos da ilha
Na busca desse reino
eu me encantei contigo
Eu que temi e adorei
o rei que procurávamos
-  O Encoberto, o Desejado
Que posso a não ser te seguir
sobre as areias onde o rei
dorme encantado?

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Uma das vozes do circo

                                                               litografia americana de 1890


desaprendo o caminho até a fonte
bebo água em outra sede
invento espaços, túneis, saídas

rumo para outros montes, alturas, raízes

clareza que mesmo na chuva
toca cada salto
ilumina as arquibancadas
sustenta as trapezistas
que entre cordas anunciam

serpentes e sobrevoos rasantes

sobre os uniformes, os escudos,
capacetes, vidraças

os atiradores das praças de confrontos perdidos
as armas pesadas e suas lágrimas

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Sorrateiro

Não foi com pancada forte que chegou
nem tinha rajada de vento
podia até ser sossego
pois não era assombração
veio mansamente
não arruinou cidades
nem desmantelou as árvores
era só um sussurro e dizia:
Ouçam-me.
Ficamos quietos e escutamos
um barco pousando no cais
ritmo, tempo, pausa
âncoras movendo as areias
profundas, tranquilas
desse lugar às vezes difícil
às vezes ameno
que chamamos de vida

sábado, 28 de setembro de 2013

Praia de Botafogo

Dizem que o mar é impróprio para banho
falam de vendavais, enchentes, blecautes
ocorre, no entanto, que o bombardeio não passa

Debaixo das palavras esconderam essa paixão
pelo incêndio e por tudo que  inflamava:
O Irã, a Pérsia e a Grécia

Debaixo de cabelos e barbas
os rostos das pessoas na calçada
crepitavam, ardiam, doíam

e não estancaram nunca mais
nem as faíscas, nem as fagulhas,
nem as lâmpadas queimadas

Não param nunca de arder
como se não tivessem passado meses , anos
e séculos
como se há pouco tivessem acendido
esse fogo calmo e feroz
que vem por dentro de tudo
e não se cala

terça-feira, 17 de setembro de 2013

lírico com guarda-chuva

Alcancei a brandura dos pântanos
já convivo bem com a escuridão
ainda assim ilumino
brilho, viro raio, relâmpago
Sei ouvir a leveza
aprendi a tocar com zelo as imagens
brinco com as palavras escândalo,
sândalo, vândalo
e fujo contente da vida para o violão

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Dialética

mesmo  com todo mal que o mundo perfeito de Platão me fez
vou buscar sossego nas águas mais quietas
procurarei alegria nas festas
dançarei para os deuses
farei oferendas
posso beber chuva, navios, viagens
e aceitar só o que é miragem
Se eu pudesse me dedicava à matemática
ah Platão, safado, agora entendi
por que você rasgou suas tragédias
foi para sobreviver
não sei se conseguirei, como você,
viver de geometria
mas eu vou tentar
os círculos, os cálculos
a invenção dos astros perfeitos
deixa de me enganar, Platão,
eu quero rir
quero  comédia
no próximo carnaval pode ter certeza
nunca mais me vestirei de cisne
irei fantasiada de número
assim quem sabe eu te venço
e viro pura equação: igualdade, fraternidade
e liberdade
Você me enganou também com a expulsão
dos poetas e artistas na República
queria esconder da gente a salvação
possível só pelo jogo, pela imagem e ilusão




domingo, 15 de setembro de 2013

Ideal

Platão me enganou fingindo que existia um mundo perfeito
não existe, ele sabia que não existia
mas inventou esse mundo para que a gente rastejasse por ele
para que a gente buscasse, tivesse sede
Por que sem sede que graça a vida tinha?
Ninguém se engane com um diálogo sobre amor
que se chama banquete
não é sobre amor é sobre guerra
ali ninguém se sacia
não há banquete 
e todos morrem de fome

Motim


Diotima,
por que me trouxeste essa tortura?
eu estava contente com os filhos que tinha
com a sensação de brandura
serenidade e descanso
mas sabes quantas vezes quis cortar meus pedaços
e o quanto não tenho beleza
e continuas a me fazer perguntar sobre isso tudo
Diotima, demônio, feiticeira
como eu queria te matar e parar de me indagar

tumulto

Sim, foi esse desejo que inventou todas as artes,
a tecelagem, a medicina, os arcos
as profecias
a metalurgia
a astronomia
um desejo que não é justo, nem sábio
nem feliz
não é perfumado mas carente de perfume
não é verdadeiro mas quer a verdade
não é corajoso mas procura  coragem
E o que fazer agora que todas essas faltas
me fulminaram a calma
eu que não tenho músculos
nem força nem bondade? 



sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Performance

Não é só para apaziguar
as guerras
é para mudar de rosto, de roupa
de corpo
fraturar-se, quebrar-se
transformar-se
ser despedida e raiz
espanto
Não é só para cantar
é para mudar de ângulo
de geografia
como as nuvens mudam de forma
também mudamos de olhos e cílios
de hábitos e de lábios

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

O banquete

até o sal elogiaram
e não louvaram o amor
mesmo que viesse com geadas e granizos
mesmo que perturbasse as plantações
e inquietasse as órbitas dos astros
o amor e até o ódio nos salvariam
e mesmo que fosse doença
também seria cura
e mesmo que não tivesse a quem se dar
também seria amor
mesmo que não fosse por pessoa alguma
e fosse só memória, promessa ou guerra
também seria amor
e se fosse passageiro também seria duradouro
e se fosse duradouro também seria passageiro
e se fosse solidão também seria companhia
se fosse mutilado também seria o todo
e mesmo se estivesse errado também seria certo
e se fosse feio também seria belo
e se fosse violento também seria delicado
e mesmo se estivesse perto também seria distante
e se estivesse distante também seria perto
porque ninguém pode entender o amor nem o ódio
nem a solidão nem outros mistérios

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

astrônoma autodidata

Te contei que recebi meu exame de sangue?
Estou toda contaminada de alumínio
e disseram que Michael Jackson desceu
só para cantar para a gente:
eu não confio em quem não toma café
não quero sair ileso dessa vida
quero cicatrizes no rosto, na face, no jeito
dessa vez desceu sem máscaras
Eu nem sabia que isso ia acontecer
a lua tava vênus
a lua trespassou vênus
Isso só acontece de quantos em quantos anos?
Não tem uma bandeira de um país que é assim?
Que país é esse, é lá Arábia?
eu só pensava no telescópio e nesse país
e em um maneira de estar lá mesmo sem estar

sábado, 7 de setembro de 2013

O teu demônio

O teu demônio me segue
anos a fio
Tece flores para mim
divide meu corpo em partes

Ele me culpa
acena feliz por trás das labaredas
dança ao meu redor
cresce como uma planta
aparo suas bordas seu rabo seus chifres

O teu demônio me encanta
como um retrato antigo amarelado
uma xícara de louça no mercado

O teu demônio me espanta
canta para mim todas as noites
me arde me explora me atormenta
O hálito quente sobre a minha boca
a febre sempre

O teu demônio vai embora hoje
eu fujo dentro dele a galope
e vivo dentro dele feito um passarinho
feito uma coisa miúda enorme pobre
dilatada como um crucifixo
dura como uma esmeralda

Me esmero e espero
um dia me chamo Laura
tu me abocanhas os peitos
eu te abocanho a alma

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Orfeu despedaçado

Há não sei quantas armas
apontadas contra minha cabeça
e ameaçam me esquartejar depois
primeiro um braço, depois uma perna
todos os meus pedaços cortados
como cactos para o gado
e ainda querem dar meus ossos aos cães
há não sei quantos revólveres
apontados contra minha cabeça
não sei quantos pássaros  mutilados
uivando
o piloto já saiu baleado com a mão no peito
a aeromoça de olhos vendados foi feita refém
muitos gritam, outros calam
e eu estou desesperado
sem saber como fugir daqui

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Contaminação

era para ser um bálsamo
e foi uma facada
era para ser de riso
e foi de lágrima
deixei minha arma no carro
para não matar ninguém
quem sabe se possa reverter:
era para ser uma facada
e foi um bálsamo
era para ser só corte e corpo
e foi de alma

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Cotidiano

se você perdesse o estojo e
o caderno, o que você faria?
procuraria
nos achados e perdidos
da estação
colocaria avisos nos postes
perguntaria a todos:
vocês não viram meu caderno?
nele foram rabiscados
a tempestade de hoje à tarde
o trem que perdi para a capital
a vontade inteira que tenho de ser real

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

búzios

me feri com a caneta
navalha que não falha
me cortou a mão
as unhas os ossos
os cabelos os joelhos
me deixou metade sangue
metade asa
estou ferido nos olhos
na nuca no peito
tatuei-me uma casa
aonde eu pudesse ir
desenhei ruas, livros
praias, filmes
um lugar qualquer
para onde eu pudesse
voar
e desabar

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

meteorologia


há quase um ano consultando os serviços meteorológicos
e nada
nunca iria nevar nessa cidade
mesmo assim sonhou que esculpia
em gelo um beijo

como não nevava
a moça hidratou os cabelos
tomou sorvete de amora
e se banhou no mar

como não nevava
ela se deleitou com a chuva
com a represa, os vizinhos
e a horta

como não nevava
resolveu abrigar-se em outro luar

sábado, 17 de agosto de 2013

pequeno vento de agosto

de qual cidade você vem agora
de qual viagem  você volta?

para atravessar minha vida de vermelho
para arrancar de vez minha tristeza
de que havia um coração com um só sentido?

de qual lugar você nunca me chama
de qual saudade você sangra
de qual espanto você cala
sem entender minha brisa e onde me rompo?


por que o vento se escondeu do meu vestido
não bate mais à porta, não me banha
com  a distância dos que nunca chegam
de qual labirinto você canta
de quais areias você sopra?

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

torpedo cósmico

nem sei em que país você mora
só quero escrever, escrever, escrever
não sei
se catas guimbas de cigarro nas pedras portuguesas
do Egito, de Israel, da Jordândia
se estás perdido em Tokio sem mapa nem estrelas
fingindo que está só
nem sei se você se escuta, se me escuta
se os versos das canções se escutam mútuas
se cruzam, se trespassam no espaço nu entre  nós e a medialuna
nem sei quem você é, nem de que século, nem década, nem nada
se é verão, inverno, outono, primavera
se é humano, pedra, animal,
homem, mulher, árvore
mas busco, procuro, canto tanto
e atrevo-me a uma ciranda de palavras
na onda  que me leva para mais longe
voz que atravessa mares, astros , lares
viajo como um torpedo para Júpiter, Netuno, Marte
nave, nave , nave
música, música, música

sábado, 10 de agosto de 2013

Canção do homem que saiu a cavalo

procurou alguém de além mar
para sonhar
não para ver, tocar, falar
só para imaginar
buscou alguém de além mar
para estar sempre distante e com saudades
e com ciúmes e com novidades
não foi para receber cartas
foi para ouvir música
não foi para ser correspondido
foi para ser abandonado

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Matafuegos

musos e musas
de todas as cidades me salvem
sou uma força em um plural terrível
atenção Lisboa, Berlim, Buenos Aires
arrombei a porta de casa
larguei os filhos
os sapatos, as máscaras
estou com um incêndio
na boca, na voz, no riso
matei toda essa vida
calculista
roubei
e estou fugindo para o poema

domingo, 28 de julho de 2013

Festa de São João




Isso não é invasão é olhação

sua noite começa melhor

depois que alguém  te olha

Se eu ficar na barraca do beijo

vou dar prejuízo

ninguém vai querer me beijar

mas se eu ficar na barraca do olhar

quem sabe, talvez,

São João

acenda a fogueira do meu coração

e aí vou continuar

não é urgente, não é para casar

é só para olhar

Isso não é invasão, São João,  é só

olhar,  luz,  câmera,  ação

meu nome é Suellen

maria chuteira

superem

sexta-feira, 26 de julho de 2013

uso e desuso

muse-me e abuse-me
cante-me
escreva-me
leia-me
curta-me
adoce-me
roube-me
use-me
mas meu coração não é de pelúcia,
baby:
é de carne

quinta-feira, 18 de julho de 2013

mensagem de uma Helena estrelada

depois acho que vou fazer um poema
mulher curiosa, mulher dos furos, do furô
das fendas, das peixeiras,
mulheres rendeiras
das navalhas, etc e tal
se quiser ainda me dar um alô
tô aqui
na luz natural do pacífico
fuso horário trocado
datas alteradas
programada e libertada
garota de programa
lâmpada acesa
entre o tear e o fuso
entre o fuso e o tear
de frente para o mar

sábado, 13 de julho de 2013

Resposta ao Anjo Gabriel

Agora que aprendeste a incendiar-me
e me adivinhas inteira dentro do vestido
agora que invadiste a sala e o chão de minha casa
agora que fechaste a porta
e me calaste com teus lábios e língua
peço-te afoitamente
que me faças assim
ínfima e sagrada
muito mais pornográfica do que lírica
muito mais profana do que tântrica
muito mais vadia do que tua 
 
                                                   George Segal, Girl putting on mascara, 1968

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Ariadne

                                                     J.W. Waterhouse 1898

Os túneis não te alcançam mais
nem rastros, nem restos
nem luzes
me arrasto entre novelos sujos
paredes escuras
labirintos
Há trilhos, muitos trilhos
Mas não são caminhos
e me prendem
Mesmo assim
vivo gerando fontes e jardins
E aguardo o dia
em que voltarás
silencioso e faminto
para perto de mim

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Clítia


Estou atada a um destino
como a um rochedo
Por séculos serei um girassol
acorrentado à luz

Amigo Prometeu, tu que roubaste
o fogo dos deuses para colocá-lo
no coração dos homens,

liberta agora meus olhos dessa escravidão

Preciso curar-me, amigo,
dessa claridade
Quero sombras para drenar
essa luz que não me dá sossego
Ensina-me um jeito de abrandar
o fogo e de expulsá-lo

Preciso de trevas para o meu desejo

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Dias de reflexão geral


Vejam só, como já virou um lema, não são apenas os vinte centavos. A questão é que não somos da realeza global. Não vivemos da boniteza midiática. A jornada dos nossos jornais não nos  pensa. A  Copa do Mundo não nos reflete.  A polícia não nos defende. Nenhum governo nos governa com ética e respeito,  talvez  a grande maioria dos políticos  não nos represente nesse momento atual em que estamos abrindo nossas feridas sociais e econômicas e mostrando a nós mesmos  e ao mundo que não somos apenas  um país de futebol e festa.

 Não é a ausência de causas, há   brasileiros, tenho visto mais de um, dizendo que é a falta de causas.  Todo mundo sabe o tanto de causas sociais que temos, as lutas desse país em vários sentidos.

 Quem disse que estamos apenas acordando agora? Sempre fomos acordados. De Palmares a Pinheirinho. De vez em quando a gente dorme, esquece, se anestesia. Mas uma  certa vigília  é aliada do pensamento. E contra esse pensamento estão disparando balas de borracha, e a gente precisando se defender com  óculos de natação e de mergulho contra o gás lacrimogêneo e  spray de pimenta.  Óculos para submersão servem agora para a subversão. As insurreições até podem ser debeladas de forma covarde com essas armas, mas o pensamento não. Ao contrário, quanto mais jogam gás, mais a gente pensa, com os olhos inchados de choro e dor. As lágrimas são de vergonha e de coragem. Vergonha porque tem gente machucada pela polícia que devia ser nossa proteção. E uma coragem diferente porque não estamos lutando com armas, estamos lutando com palavras, com reflexão .

Quem disse que não há pensamento nessa rebelião? Só não é o pensamento de nenhum líder carismático salvador da pátria, é o pensamento de muita gente se unindo, muita gente pensando de modo coletivo. A cada dia os acontecimentos estão nos fazendo pensar mais, a inflação nos fazendo pensar, a inflamação das gargantas nos gritos e nos choques com os repressores. Tudo isso faz pensar e pensar muito.  São dias de reflexão geral, dias em que a  intelligentia está vacilando porque não sabe de que lado fica. Dias em que os torcedores de futebol também estão vacilando porque precisamos pensar criticamente o futebol . Bom que esteja todo mundo atordoado, perturbado, incomodado. Precisamos incomodar, sim, vamos incomodar. Precisamos nos espantar  e levantar a cabeça e o pensamento contra a ignorância, contra o comodismo.  E como diz Sartre, somos condenados à liberdade e somos responsáveis por isso, somos responsáveis por cada um dos nossos atos e escolhas. E o que estamos escolhendo agora?  Lutar contra a imposição,  contra o retrocesso, lutar pelo direito de  ter ideias e de manifestá-las livremente sem opressão. O  pensamento crítico é isso:  o espanto com responsabilidade e criatividade.

sábado, 15 de junho de 2013

A fiandeira

                                                          fábrica de tecidos século XIX

Eu fiaria um manto inteiro hoje
enquanto você dorme
Há lembranças que não tenho onde guardar
e que só depositaria bem numa fogueira

Não há memória, nem nomes,
nem arcas, nem caixas
que possam conter tanto furor

Eu fiaria um manto inteiro
mas um manto não serve
Poderia inventar lendas
narrar um sonho aos marinheiros
mas nem lendas, nem sonhos,
nem marinheiros poderiam exprimir
o que vivi

Eu fiaria um manto inteiro hoje
mas não serve um manto
não serve enterrar segredos numa ilha
e esperar o temporal passar

Há dias em que os raios são a única saída

domingo, 9 de junho de 2013

A chegada de Mercúrio

Acendes espelhos por onde passo
e mesmo em tua fúria
inventas silêncios que me acalmam
mirantes, fogueiras, viagens
tudo me trazes nos dias em que ancoras
tua ventania nos meus braços



quinta-feira, 6 de junho de 2013

Oráculo

                              
O pássaro no seu voo encontrará o infortúnio
Será ferido por um raio
seu coração de ave trespassado
por setas de ilusão e de beleza
Querendo o temível
e o transgressivo
o pássaro assim tão desmedido
poderá espatifar-se no rochedo
ou despencar no mar
atordoado
no voo proibido do desejo

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Filosofia e Romance Policial

     Há quem afirme que o romance policial é um gênero controverso,  acusado de não evocar questões inquietantes de uma literatura mais elaborada intelectualmente. Sendo assim considerado inferior aos outros gêneros literários.

     Um dos exemplos dessa controvérsia é a obra do escritor belga George Simenon (1903-1989), autor com habilidade jornalística para a escrita rápida e cujas vendas mundiais são indício de um sucesso literário respaldado também por vários artistas, intelectuais e escritores que foram seus contemporâneos.

    Humanista, cético, com uma aguda visão psicológica da sociedade, através da observação de crimes,  invejas, dores, humilhações e sofrimentos, o inspetor parisiense, Jules Maigret, seu  mais famoso personagem, atua como um autêntico investigador dos " labirintos da alma" humana. Desvendando, muito mais que crimes, o que há de " humano, demasiado humano" em cada um de nós.

   A referência a expressões de Nietzsche não vem por acaso. O filósofo alemão descobriu  em autores da literatura do século XVII,  como La Rochefoucauld (1613-1680), e em alguns outros escritores considerados frívolos por muitos intelectuais renomados,  uma fonte generosa para observações perspicazes sobre a condição humana e denuncia, além disso, que  os textos grandiloquentes negligenciam observações mais agudas sobre nossas ações, motivos, maldades e mesquinharias.
   
     Os enredos policiais dos romances de George Simenon podem ser, sim, potentes catalisadores para uma compreensão mais apurada de nós mesmos. Suspense filosófico e existencial. Literatura de entretenimento aliada à aventura do autoconhecimento.  Hitchcock, como nos aponta o filósofo e psicanalista Zizek, é também uma possibilidade para essa aventura.
                                              Recriação fotográfica de Vanity Fair

sábado, 20 de abril de 2013

Marisa

apedrejo vidraças, sou da pichação
rompo os tratos, os trapos

destruo calendários, lojas da marisa
plantações de alfaces, pepinos, hortas orgânicas falsas

vadia sou eu que faço hot dog pra moçada
moradora de prédio ocupado, manicure
cabelereira e ladra nas horas vagas
sonhando todo dia em atacar o shopping center

eu e a máquina de lavar, a pia, o pano de chão
os filhos, a solidão e aquele amante pilantra que visito na prisão,
momentinho no parlatório, fila para entrada,
dez minutos de love e mais nada

eu sou a própria manifestação, a pombajira total
boderline, bipolar,  tudo uma farsa
que papanicolau que nada
e  essa história de cândida ?

pureza?
meu lance mesmo é o cigarro e a cachaça

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Sexta-feira do desmanche total

por aqui tudo pacificado,
apaziguado, dominado
virei dono de farmácia
quero ver o povo vir
comprar a bonitinha na minha loja
com receitinha de fitoterapeuta natureba
em doses homeopáticas
dá tudo na mesma:
cachaça, fumacinha, coca-cola
florais e cápsulas de alho
todo mundo igual
na sexta-feira do desmanche total
se você vê vozes, ouve vultos
sente-se vítima de feitiço ou maldição
venha para os filhos da luz
funk de jesus
cartomantes, políticos, sifíliticos
só jesus na causa
dentistas de todos os credos, uni-vos
porque só jesus salva

quinta-feira, 28 de março de 2013

O nascimento das aves

                                                     Creación de las aves- Remedios Varo



                              Estão nascendo de minhas mãos feridas
                              essas aves
                              nuvens condensadas
                              pequenos faróis
                              desejos que acendo no ar marinho
                              as flechas que procuro ser
                              estão camufladas no voo
                              e acertam o alvo noturno
                              de tudo que em mim é ausência inquieta
                              ou ritmada música

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

A paixão no espelho

                                                              Paul Delvaux




É como se eu cantasse sozinha dentro de uma gruta
e uma matéria nua me cercasse

Dentro em pouco serei uma mulher
de cabelos mais longos
estilhaços de alegria me atingindo por todos os lados
meus olhos, habitualmente pretos,
ficarão mais pretos ainda
Uma vontade sem medo de enfrentar os que chegam
e abençoar os que partem

É como se eu dançasse sozinha numa rua escura
e beijasse Lázaro
e me entregasse às feras
e aprendesse a dormir com as tempestades