Recentemente, lendo o filósofo francês Gilles Lipovetsky, faço algumas breves reflexões a partir do capítulo “ Narciso ou a estratégia do vazio”, do livro “ A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo”.
Segundo o autor francês, o sujeito atual está, por assim dizer, vivendo em um bunker narcisista. Ele entende essa noção não apenas como uma vivência voltada exclusivamente ao culto ao corpo, à beleza padronizada, ao não envelhecimento, ao consumo, mas a um outro estilo de vida que ele denomina homo psychologicus :o indivíduo preocupado antes de tudo com seu bem-estar. E nessa busca pelo bem- estar, ele inclui tudo: yoga, acupuntura, medicinas alternativas, todos os orientalismos arrancados de suas raízes e transportados para o Ocidente, seitas religiosas, indústria farmacêutica, psicoterapias em geral etc.
Sem nenhum tipo de motivação essencial, o Narciso contemporâneo busca de toda forma sobreviver à sua própria apatia (em grego: ausência de paixões), tentando realizar-se apenas no seu próprio poder de consumo e na estabilidade de sua saúde. Sem grandes causas sociais, religiosas, artísticas, o que importa é cada um por si, refugiando-se no seu eu ou no seio de uma pequena família cada vez mais frágil. O eu como nossa única âncora, raiz, proteção , nosso bunker, um escafandro no mar.
Algo mais narcisista ainda seria a busca desses sujeitos por uma autossufiência afetiva, a fuga do arrebatamento, do embate amoroso, das relações densas com os outros. Tudo se passa em um meio muito “ climatizado”, sem grandes acirramentos de pontos de vistas, sem grandes hostilidades.
Claro que essa paisagem é hoje muito mais visível para os teóricos europeus, mas até que ponto também não começa a ser a nossa?
Outros autores acentuam a vivência de emoções de modo transferido, como no caso de filmes, esportes, espetáculos, exposição da intimidade das celebridades. Não estaríamos vivendo, estaríamos sendo vividos. É como se o que está na tela vivesse por nós, transferimos nossas necessidades de aventuras e paixões fortes para algo fora de nós e levamos uma existência indolor e sem riscos. Diagnóstico de uma sociedade altamente hedonística e esvaziada.
Minhas dúvidas são muitas. Se por acaso concordarmos com algumas ideias de Lipovetsky, como tornaríamos Narciso alguém que se abre para o corte, para o desconhecido, para o desafio? Se todos querem ser anestesiados, se ninguém tem mais tempo de sofrer, se sofrer se tornou algo extremamente antiquado e vergonhoso, quais seriam as paixões possíveis? É proibido sofrer, é proibido se entregar, é proibido se arriscar.
Em outras palavras, a ideia é: controle seus sentimentos acima de tudo, pratique hábitos saudáveis, não aparente envelhecer, alimente-se bem, faça check-up, cuide de si e não caia na armadilha das paixões, nem no perigo de nenhuma causa maior além da segurança da sua existência individual ou da pequena família da qual você faz parte. É o estilo de vida mais inofensivo que talvez possamos ver, uma vidinha consumada e consumida pelo consumo, dedicada à saúde e ao bem-estar. Será que nós também estamos condenados à essa apatia, será que algum fogo ainda acende nossos espelhos frios? A gente quer só isso?