Após algumas leituras do filósofo francês Gilles Lipovetsky, autor de livros como A terceira Mulher, A era do vazio, Sociedade da decepção, sugiro alguns pontos de conversação sobre o pensamento da feminilidade no cenário do pensamento a respeito do sujeito contemporâneo.
Lipovetsky insinua algumas imagens
para pensar o feminino. Na fantasia
elaborada pelos homens
e seus mitos,
a primeira
mulher aparece na antiguidade
associada ao caos,
ao funesto, ao trágico,
ao terrível. Força
que amedronta os homens,
celebrada pela fecundidade
mas com
uma beleza associada
à maldade, não
é ainda de modo algum o belo sexo, a imagem
de ternura e bondade
que se consolida no Ocidente,
segundo ele, a partir
das pinturas renascentistas.
Essa seria a “segunda mulher” sagrada, cantada pelos poetas, celebrada pela arte na fantasia masculina. Além dessas duas imagens do feminino que, de alguma maneira, ainda podem perdurar na cultura atual, hoje teríamos uma terceira mulher, cada vez mais inventada por si mesma, mais distante da criação masculina e mais criadora de si própria. No entanto, envolvida no cenário da subjetividade contemporânea cujos desafios partilha igualmente com os homens.
Essa seria a “segunda mulher” sagrada, cantada pelos poetas, celebrada pela arte na fantasia masculina. Além dessas duas imagens do feminino que, de alguma maneira, ainda podem perdurar na cultura atual, hoje teríamos uma terceira mulher, cada vez mais inventada por si mesma, mais distante da criação masculina e mais criadora de si própria. No entanto, envolvida no cenário da subjetividade contemporânea cujos desafios partilha igualmente com os homens.
Apesar dos louvores
aos encantos femininos,
nas representações da Grécia antiga a beleza viril teria uma marca
superior
à beleza feminina, inclusive a famosa Vênus de Milo tem algo de andrógino. Mas
sendo essa beleza entendida
como beleza
má, a mulher está longe
de se colocar no alto
das representações de excelência da cultura.
Helena enseja
a guerra de Troia, Pandora solta todos os males para a humanidade. As
artimanhas de Afrodite, os ciúmes terríveis
de Hera, a maldição
da Medusa, o caos
apaixonado representado por outras figuras como as
bacantes e Medeia. Tudo
isso nos
mostra a mulher
,em geral,
representada como astuciosa,
mentirosa, um
perigo que
se insinua e se oculta sob aspecto sedutor,
portadora da desordem, sua única dignidade é a procriação,
nada de grandioso ela
traz à civilização. Essa beleza
não poderia
ser cultuada com
a mesma ênfase
que a beleza viril, pois é pérfida, nefasta,
ardilosa. E, posteriormente,
na representação cristã, Eva é a autêntica porta
do diabo.
Botticelli
Na cristantade, só a virgem Maria cujo culto e cujas representações iconográficas se intensificaram a partir do século XII possui a inocência da beleza, mas ela é cultuada como virgem e mãe de Cristo muito mais do que como mulher. A mulher na arte medieval continuaria sendo representada como raiz do mal, como “ arma do diabo”. Para se emancipar dessa tradição de maldição seria preciso que a própria arte tivesse uma finalidade não mais religiosa e que a beleza feminina ganhasse outro significado.
Botticelli
Na cristantade, só a virgem Maria cujo culto e cujas representações iconográficas se intensificaram a partir do século XII possui a inocência da beleza, mas ela é cultuada como virgem e mãe de Cristo muito mais do que como mulher. A mulher na arte medieval continuaria sendo representada como raiz do mal, como “ arma do diabo”. Para se emancipar dessa tradição de maldição seria preciso que a própria arte tivesse uma finalidade não mais religiosa e que a beleza feminina ganhasse outro significado.
Segundo Lipovetski, é a partir da Renascença que a mulher ganhou efetivamente os contornos do que poderíamos então chamar o belo sexo associado à perfeição moral. Beleza e bondade feminina se conjugam então como aspectos gêmeos de uma mesma realidade. Ainda que a primeira mulher portadora da malignidade e da desordem selvagem não tenha deixado de habitar o imaginário cultural, inicia-se o reino da prioridade da beleza feminina. Basicamente na criação dos poetas e dos pintores sem que isso significasse efetivamente uma promoção social e intelectual.
Tiziano
Nos séculos XV e XVI , marcados pelo humanismo, a beleza das mulheres passa a ser estimada e admirada como elevação espiritual , a vênus de Boticelli ilustra de modo exemplar essa nova afirmação da beleza feminina. Lipovetsky escreve:
“ Vênus substitui a
virgem. Com a
ressalva de que lhe
toma emprestados os traços
específicos, a pureza,
a doçura celestial.
Aérea, de uma graça
linear e fluida,
a Vênus do pintor
florentino está impregnada de pudor, de vida eterna, de uma expressividade comovente, seu rosto se assemelha mais
a uma Madona do que
ao das deusas antigas.”
Em
outras pinturas, as Vênus
deitadas nos fazem pensar
em uma mulher
cujas forças terríveis
foram apaziguadas, diferentemente
da beleza meduseia e das deusas que
se vingavam de quem via
sua nudez, como Atena se vingou de Tirésias cegando-o, a mulher
deitada e adormecida pode ser contemplada na pintura, é a representação
da tranquilidade, da passividade e brandura. Maneira
de torná-la acessível aos sonhos dos homens. Exaltada nos
círculos cultivados e ricos, a cultura
do belo sexo
se instalou mas não
se universalizou. Para o pensador
francês, durante
cinco séculos,
essa cultura permaneceu elitista e aristocrática.
Manet
Manet
No século XIX, com a literatura decadentista volta a ter relevo a mulher maldita, funesta, bela e impura. Personagens como a cigana Carmen ou a beleza do mal em Baudelaire voltam a acentuar a beleza demoníaca da mulher associada ao trágico, à perversidade e à morte, levando o homem à perdição e ao caos. Assim como a beleza celeste a beleza maldita de vez em quando reaparece no cinema com o estilo das vilãs e da beleza vamp. Mas o que sobretudo passa a ter vigência e nas representações culturais do século XX., segundo Lipovetsky, a partir das décadas de 40 e 50 é um novo estilo: A beleza pin-up muito mais lúdica que tenebrosa, muito mais destinada aos amores sem conseqüência que às paixões devastadoras, presentes nos calendários, nos painéis publicitários, no cinema. Esbelta, elegante, saudável, sorridente se parece mais com uma boneca brincalhona, cheia de vitalidade jovial, afastou-se de qualquer vínculo com o terrível e o trágico. Beleza cuja visão mais eloquente é Marylin Monroe, embora ela mesma entrecortada por seus próprios dramas. Como se o poder terrível da beleza feminina tivesse se interiorizado e se voltado contra as próprias mulheres.
E agora
nos vemos diante
do boom da beleza, o
culto do belo
sexo entrou na era
das massas, perdeu sua
raridade e invadiu a vida
cotidiana, democratizou-se e tomou conta da vida das mulheres em geral. Vivemos a febre
de um ideal
de beleza-magreza-juventude e algumas feministas
chegam a pensar em
um contragolpe:
no momento em
que as mulheres
se libertaram de coerções sexuais, religiosas, sociais,
domésticas, estariam de novo aprisionadas. Após a prisão doméstica, a prisão estética seria nossa
condição. Porém,
segundo Lipovetski mais
que uma desforra
estética machista,
a nova situação
da beleza exprime mais
que tudo
a tecnização do real, o triunfo da razão
que caracteriza a modernidade tomou conta também da aparência, tornando-a passível
de controle e posse,
atingindo embora em
escala menor,
também os homens.
Como já mencionei, ele analisa que a beleza arcaica que amedrontava os homens hoje pode ter se tornado uma forma fantasma de amedrontar as próprias mulheres. Vivida hoje mais como coerção ela se instalaria numa espécie de totalitarismo, de biopolítica muito condizente com todas as prescrições relativas ao corpo. A terceira mulher emancipada, criadora de seu próprio destino, passa a ser talvez também um desafio para as mulheres diante dos impasses das coerções atuais da mídia-publicitária-democrática. E aqui homens e mulheres se deparam com a subjetividade contemporânea delineada por Lipovetsky em outros de seus livros como um sujeito deserto.
Como já mencionei, ele analisa que a beleza arcaica que amedrontava os homens hoje pode ter se tornado uma forma fantasma de amedrontar as próprias mulheres. Vivida hoje mais como coerção ela se instalaria numa espécie de totalitarismo, de biopolítica muito condizente com todas as prescrições relativas ao corpo. A terceira mulher emancipada, criadora de seu próprio destino, passa a ser talvez também um desafio para as mulheres diante dos impasses das coerções atuais da mídia-publicitária-democrática. E aqui homens e mulheres se deparam com a subjetividade contemporânea delineada por Lipovetsky em outros de seus livros como um sujeito deserto.
Nada
contra a beleza
pin-up, contra
a vida confortável
e saudável. Podemos ser
beneficiados pela técnica
mas podemos também
manter acesa
a inevitável dimensão
trágica da vida.
Me soam bem
os versos de Paulo Leminski quando nos
diz que
um homem
e, no nosso caso,
uma mulher com
uma dor é muito
mais elegante.