quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Antônio Francisco Lisboa

Mesmo sem querer
vou segurando em sombras
me agarro às adralvas  das portas
me apoio na cantaria das casas

Que ando a querer nas torres altas?

Confio meu corpo aos pináculos
Sustento-me em arcos cruzeiros

Com o que resta dos meus braços
modelo a carne dos anjos

Que a ando a buscar nas madrugadas?

Por que insisto em iluminar
a noite desse jeito?

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Zarabatanas

Ninguém esperava mais
por esses cabelos imensos
por esses olhos de fera
esse meu ar de arco e flecha
Zarabatanas eu faço
com mãos de índio bravo
ponho o curare na ponta
paraliso os ventos errados
e só atraio belos raios

domingo, 23 de fevereiro de 2014

O lobo e a festa

O lobo aluga quartos em nosso corpo, em nossa ordem silenciosa e provisória. Ele se aloja lá como um crustáceo no seio de uma dama. É a estranheza com a qual precisamos conviver. Nossa própria dor, nosso exílio. Somos portadores do lobo, mas precisamos de algum tipo de verniz, por isso precisamos do cenário, mesmo que se ande por aí desastrado. O lobo da estepe se apaixona por sua própria juventude na personagem Hermínia, travestida de homem. Dialoga com o feminino como quem dialoga com o passado, com a festa, com a união que a festa proporciona. A ilusão de não ser solitário.Vai para o baile de máscaras onde todos podem ser quem desejam. Através das máscaras e dos nomes cifrados, muitos corpos se tocam sem se tocar, ou fingem muito bem que não se tocam. O desejo secreto da festa é o desejo do todo. Entre o lobo, a festa e a burguesia estamos atados e encantados. Às vezes malvados, às vezes delicados, fazemos com a vida pactos.

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Nietzsche, o lobo da estepe e o burguês

Lembro-me de ter lido pela primeira vez "O Lobo da Estepe", de Hermann Hesse, numa idade da vida em que ainda me sentia uma tenra Chapeuzinho. Muitos e muitos anos depois, o livro está voltando às minhas mãos e aos meus olhos de loba e não sossego com as impressões que me causa. A primeira é a forte influência do estilo de vida de Nietzsche nesse personagem. O hóspede que costuma alugar quartos em quietos e tranquilos lares burgueses, onde ele pode se proteger secretamente do seu ódio contra a burguesia.

Era um estranho que, apesar da intensa experiência solitária e esquisita, precisava de um ar de família para sobreviver, precisava da sua memória, do seu passado, das suas raízes. Hermann Hesse nos diz que “convivemos sempre na burguesia com uma grande multidão de natureza fortes e selvagens”. Penso também no “povo de solitários”, de Cioran.

Nos quartos das casas ou hospedarias sossegadas, encontramos o lobo suspeito.
O hóspede desamparado e sem laços. O lobo que busca conforto no cheiro bom de um lar bem cuidado com os pequenos e delicados hábitos de limpeza e ordem, entre plantas tratadas com esmero e zelo femininos. Lá está o lobo. Não numa toca, não entre criminosos, mas no “pequeno espaço taqueado entre a escada, a janela e a porta de vidro”, fumando seus cigarros, lendo seus livros e já espantado e preocupado com o destino da música depois da invenção do gramofone e do rádio. O lobo selvagem, contrário a tudo, vivendo em meio ao odor da cera do assoalho, entre cortinas e móveis, respirando a “fidelidade às mínimas coisas”.Talvez seja um início. Comecei pelo cenário. Esse doce e desarranjado cenário...

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Canção de amor para uma moça judia


Conheço Rosinha Palatnik
por um único retrato de louça
que vive no cemitério
entre os túmulos judeus
Morreu em 1936 aos vinte anos de idade
e há sobre a lápide letras em hebraico
que não decifro

Talvez suicídio, talvez outra sorte
De qual morte morreu essa moça judia
que não morre?
De qual vida ela vive naquele retrato
de louça que mais parece de carne
E por que vem assim
semear-me no meio da tarde?

O que te devo, mulher, o que queres?
Viveste na minha cidade
e queres ainda viver por mim, por meus olhos
por minha carne de homem
boca  lábios  ouvidos
e queres ser uma música

Te vejo em muitas lugares
sempre dentro do retrato
presa e viva, branca e morta
Que queres, mulher,
tanto tempo depois do tempo
em que houve calor para ti no mundo?
Que queres na tua janela de vidro
com o teu corpo de cinzas?

Não me faças desejar-te assim
Tu que não tens mais carne
para o meu desejo
nem sequer seda de vestido que eu toque
nenhum corpo nem seios
só o retrato frio na lápide
Que amor terrível é este que me trazes?

domingo, 16 de fevereiro de 2014

O mapa do rosto

Uma face para sofrer e perecer
outra para resistir imóvel sob a chuva
uma face feliz outra pasma
uma face encantada
outra para oferecer às explosões
navalhas
aos rios que viriam envenenados
a todo tipo de bicho
a todo tipo de ódio
a todo tipo de amor que atravessar a vidraça
e vier me ferir com seus dardos