segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Nietzsche e a serenidade grega




(...) A interpretação nietzschiana para o conceito de serenidade grega será desdobrada em diversas perspectivas. De um lado, o equívoco estético que a tradição teria cometido derivando a concepção da origem da arte grega apenas através da miragem apolínea. De outro lado, o modo como essa pretensa serenidade degenerou na serenidade teórico-socrática, entendida como conforto não ameaçado, como serenidade proporcionada pelo conhecimento que seria, na visão de Nietzsche, a base do otimismo frívolo na arte e do otimismo teórico na ciência.

      Diante desse problema, a hipótese nietzschiana é extremamente fecunda. Segundo o pensador , a chamada serenidade ou jovialidade grega não era senão uma máscara apolínea diante do abismo terrível da existência representado por Dioniso. Ou seja, a tal  " cor rosada" da jovialidade grega foi uma estratégia que esse povo teria encontrado para tornar a vida suportável diante do fundamento do ser como contradição e dor.

     A imagem usada por Nietzsche é a ideia de Goethe de uma cruz coberta por rosas. Teríamos a dor do mundo expressa pela cruz, e as rosas como delicada superfície sobre a qual nos apoiamos para mantermos nossa fé e nosso amor pela vida. Dessa forma, todo o pendor dos gregos para as festas, para as celebrações religiosas, para a transfiguração da dor na obra de arte trágica não seria senão a estratégia genial de um povo para escapar do absurdo da existência e de um possível desencantamento do mundo. Uma estratégia para evitar tanto a fuga para o nada dos indianos como o apego material e militar pela vida que se expressou depois no Império Romano.

    Os gregos ter-nos-iam então proporcionado esse grande ensinamento de gratidão pela existência, de afirmação incondicional e festiva da vida e nos teriam mostrado que, ao ser transfigurada em beleza, a dor não conta como objeção à vida, mas, ao contrário, serve de estimulante e torna a existência ainda mais fecunda. Não por acaso, o filósofo termina seu livro O nascimento da tragédia com a exclamação do quanto precisou sofrer esse povo para vir a ser tão belo.

 Iracema Macedo in trecho de capítulo" Sobre a noção de serenidade no pensamento de Nietzsche" publicado em O cômico e o trágico. Rio de Janeiro: editora 7 letras, 2008.

domingo, 28 de outubro de 2012

Manobras de atracação e desatracação

Goya





quase não lembro deles
antes de serem capturados
pela lenta escuridão que os afastou
de todas as possibilidades lúcidas

mesmo nesse lugar quieto,
administrado, envidraçado,

com luzes fluorescentes,
a hesitação faz a ronda

há ainda nuvens, cegueiras
a tristeza de uma pele diante da outra
um rosto diante do outro
e as bocas de todos que falam
sufocando seus desastres

domingo, 21 de outubro de 2012

Zarabatanas

                                                           Jason Martin

Ninguém esperava mais
por esses cabelos imensos
por esses olhos de fera
esse meu ar de arco e flecha
Zarabatanas eu faço
com mãos de índio bravo
ponho o curare na ponta
paraliso os ventos errados
e só atraio belos raios

sábado, 13 de outubro de 2012

Luísa




                                                                       Combone
                                      

Não sou precisa
nem sólida ou líquida
Sou matéria que hesita
entre muitas feridas
Não sou precisa
não tenho fórmula
não me equaciono
não tenho lógica,
meu caro,
lamento
não tenho siso nem senso
e ando vestida de vento

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Arthur Bispo do Rosário

                                                                                                                  
                                                                         a João Marcelino




Me prendam que estou
me transformando
em rei em verso em canto
Que venham as virgens em cardumes
Que venham moinhos e gigantes
Por onde passo as coisas
hesitam por seus nomes
tal a minha fúria
Vestem-me de louco
mas sou apenas
um arquiteto de retalhos

Enquanto outros acendem
lampiões   estradas   pontes
acendo reinos  dulcineias  cartas
Bordo delírios em panos
De tudo que acho perdido
teço um manto e um sonho
Chamam-me de louco
Quem venham as virgens em cardumes
Sou apenas
um arquiteto de miragens

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

As Vestes


TRAMAS  :  Recital de música e poesia com autores variados. Casa da Ribeira, Julho de 2012, Natal-RN. Interpretação teatral de Clotilde Tavares,  canções na voz de Heliana Pinheiro  e guitarra de Joca Costa.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Prisões

Antes eu era o incêndio
agora faço seguro contra fogo
contra roubos

Eu mesma era furacão
eu mesma roubava
agora apaziguo tudo e tranco

Antes eu era as perdas
agora sou vista pelo bairro, precavida,
comprando cadeados sob medida

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Vestuário de Sísifo

                                                               Nino Cais


estou repetindo as roupas
como se fossem farda
como se fossem fardo

estou refazendo a família
o álbum de atos ratos
e retratos

e todos os demais
hábitos e fracassos

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Amar, verbo atemporal






 

"Abrangendo a produção literária de cinco séculos, a coletânea
 de poesia  Amar, verbo atemporal apresenta o que nenhuma
 outra jamais conseguiu:um verdadeiro mosaico das mais
 variadas e distintas interpretações líricas
 do amor. Organizado pela poeta e tradutora Celina Portocarrero,

 o livro reúne 50 poemas de autores clássicos,
 nascidos entre os anos de 1623 e 1897,
 e mais outros 50 inéditos, de autores nascidos entre 1936 e 1989, 
traçando em cores diversas uma ampla radiografia
 do sentimento amoroso,
 colhida de todos os cantos do país 
e abarcando os principais momentos da poesia brasileira."

Obs: Entre os autores nascidos no RN, fui incluída juntamente com a 
poeta Goimar Dantas. http://poesia-potiguar.blogspot.com.br 

Inicio

sábado, 8 de setembro de 2012

Corveta

                                                              Bispo do Rosário (Veleiro)
          
                      

                                                                            para Arthur Bispo do Rosário

No estaleiro
consertando presságios,
crianças guardadas e briquedos,
estacionei com âncoras e garras

pousei com ossos frágeis, radiografias
plumas inchadas pela chuva

esperando voltar aos mares
sanguíneo
voraz
refeito de todo dano
respirando de novo pelos panos

domingo, 2 de setembro de 2012

paixão no muro


                                                  



com o forte cheiro do spray
me pintas os trajes, os cabelos
com essa tinta fria
me queimas as faces e os dedos

sem luz, descalça
colada à orla da noite
vencida, mas levemente calma

siderada estou sob tuas armas

domingo, 22 de julho de 2012

hidráulicos




a infiltração no gesso
gota a gota no ritmo
sossegado do peito
sangue cristalino
se esvaindo no corredor
a vida transbordando de tal jeito
que nem os canos de ferro, os cadeados
gavetas, armários
nem chaves nem senhas
poderão voltar a rasgar

eis-nos todos infiltrados
enredados
ligados de tal forma
que nenhuma tesoura ou navio
voltará a trancar nem desatar

sábado, 21 de julho de 2012

mosaico de roupas, cores e forças


 Se sairmos bem cedo de bicicleta, enquanto o trânsito da cidade do Rio de Janeiro está mais ameno, podemos nos deparar com uma  indagação artística a céu aberto. Flanar pelo Rio hoje é dialogar com essas imagens que estão por vários  bairros da cidade, pela Av. Presidente Vargas, pela Lapa, pela Gamboa, Saúde, Santo Cristo, Pedra do Sal, Tijuca, Andaraí, Grajaú,  Morro dos prazeres, Morro da Providência. Nenhum lugar popular ou de elite está imune a esse febre das cores e formas que  está sendo trazida para a cidade. Saindo de bicicleta, de metrô, de trem, de ônibus, de carro, pessoas com suas mochilas e escadas,  seus bonés para enfrentar a luz forte do dia, ou  munidos de sua própria luz , para dialogar com a noite e com a chuva, estão humanizando as paredes, desvirginando os muros,  lutando contra a pureza de um mundo sem cor debaixo dos viadutos, em tapumes, em barcos vivos ou destinados ao cemitério de navios, casas e prédios  previstos para a demolição, pintando as ruínas, os restos, o que ainda há no porto, o que ainda pode haver de vida numa cidade que rebeldemente não quer se submeter ao choque de ordem do imperialismo capitalista com seus prédios vitrificados e metálicos, organizados, administrados, mas sem vida, sem imprevisibilidade, sem o risco da beleza marcadamente humana, lírica, das figuras e rostos de mulheres e homens que habitam nosso cenário visual atual.
      No processo de criação, a arte é interpelada pelos habitantes, uns acham maneiro, outros querem denunciar à polícia ou a quem quer que seja aquilo que, na cabeça deles, não deveria estar ali. Uns se sentem os donos do espaço público e fazem cara feia, outros param e contemplam como crianças, sempre dispostas ao lúdico e ao inesperado, fazem sugestões e interagem, pedem coisas, conversam, contam suas vidas, querem que pintem também suas caixas-de-água, suas casas, seus traillers de cachorro quente.  Momento em que o artista dialoga autenticamente com seus espectadores e com o ambiente porque às vezes há lixo, há lama, há esgoto por perto e  a mania de limpeza  contemporânea , bem representada pelo símbolo do álcool gel, não pode entender o que é isso.
   A história da arte na rua, nas praças, nas cavernas, nos vasos antigos, em lugares permitidos ou não permitidos, ganhou definitivamente muros que não são mais puros nem submissos à arquitetura vitrificada, limpa e padronizada dos prédios urbanos. Por toda parte pode se ver rostos e corpos pintados de homens e mulheres, formas híbridas, mosaico de roupas, cores e forças.  Como se a cidade estivesse se vestindo com outros trajes, como se as roupas que nos envernizam e cobrem nossa condição humana, demasiado humana, tivessem explodido em varais, em tecidos,  homens com formas longilíneas e inusitadas mostrando que as possibilidades de um corpo são múltiplas e não se restringem às formas banais da realidade. Espaço virtual onde  sambistas, ídolos, pessoas comuns são desenhadas para se reconhecerem em seu próprio bairro, em seu próprio lugar, para ganhar com seu rosto na parede uma nova raiz, um novo teto sob o céu livre, uma nova morada.

Pode ser a própria alegria e o grito de angústia da condição humana que esteja por trás de um tão intenso movimento, de uma tão colorida febre e imprevisibilidade.Como dizem, a arte aumenta o mundo , potencializa o mundo, provoca transbordamentos e cria sempre novas possibilidades, abre caminhos, inicia árvores, cria pontes.
 Cores, roupas inéditas  e tintas, sejam cada vez mais bem-vindas.

domingo, 17 de junho de 2012

pequena prece das esculturas ao seu autor

                                                                          Rodin  

podemos ser de carvão
lâminas de gelo ou gesso
a qualquer hora
desfeitos pela mágoa

mas buscando o que não passa
nossas bocas de febre e rito
aterrissam em tuas mãos

e na inquietude do mármore
com hálito de punhal
nos salvas


segunda-feira, 28 de maio de 2012

atlas

                                                                   John Singer Sargent
                                                       


elevadores atlas nas cidades do sul
sustentam o mundo
as pessoas e seus sustos
erva mate madrugada pastoreio
tertúlia
pé sujo com ana júlia
trocando o salto alto com o baixo
pousando na rua da praia com sabrina
no fumódromo sem fumar
essa ave de estrela
compactuando e dividindo
batata frita com picanha
noite de quinta-feira
mulheres livres e tais
que as sombras de Mário Quintana
e seu fantasma
não assombram mais

sábado, 19 de maio de 2012

O Horto

Juazeiro, Juazeiro
o peso de tanta gente
vou levando na ladeira
imagens estilhaçadas
cacos de virgem Maria
santos decapitados
braços e pernas de gesso
corações de cera
partes que foram curadas
estilhaços de uma guerra
mulheres vestidas de preto
dentro de mim vou levando
cruzes pesadas, romeiros
e uma capela de Santa Clara
acesa dentro do peito

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Poeta perdendo a prece

Que poderá o poema nesta noite pouca
em que muito frágil e antiga
tento em vão cobrir-me com uma túnica?

Que poderá o poema contra o frio
contra a nudez batendo sobre as coisas
e minha cara refletida sobre o vidro?

Que poderá ainda
contra o rigor habitual dos edifícios
contra pequenos abismos e misérias

Que poderá contra meu ódio
contra minha inveja
e a manhã que virá com luz fortíssima?

terça-feira, 17 de abril de 2012

Pisciana


Ainda hoje o rádio alto da vizinhança no pátio
crimes soterrados sob a enxurrada de notícias

quebram-se arcos
alçam-se escarpas

e escamas mansas, temerárias, mudas
fazem com que nades e sobrevivas

maquiada e calma
peixe-mulher
solta  livre obstinada
bem no meio da Avenida Paulista

domingo, 1 de abril de 2012

A casa

                                                                          Bosch

Até os ratos abusam de nossa fraqueza
e começam a empestar a casa
De que vale sufocá-los nos buracos
se a brasa que nos resume é muito mais ligeira

Uma coisa enorme e insana
arrasta sua cauda dentro da gente
Nem os barquinhos de papel resistem
nem bonecos de pano nem peças de dominó

Círculos se fecham uns sob os outros
e ali mesmo se quebram
Bichos e anjos se iniciam por todos os lados
e devoram tudo

domingo, 18 de março de 2012

A menina fantasma do internato

Diante das coisas mais óbvias
estanco
como se fossem abismos
Não aprendi a dar os passos decisivos
Tenho desejado corredores longos na penumbra
como nos antigos colégios
É noite, escuro
lá fora os fios da cidade não me alcançam
nem as profissões, nem o futuro
Quero ficar no colégio eterna interna
feito uma menina morta aos treze anos
feito Laura Vicunha, feito as velhas madres
Quero ficar guardada nos retratos para sempre
E com meu corpo de vento
descer e subir escadas
brincar no jardim
E à noite
quando todos partem
e as freiras dormem
ter um colégio
e um mundo todo para mim