Do que andei estudando até hoje na obra de Nietzsche, encontrei a expressão Amor fati poucas vezes mencionada literalmente, mas, nessas poucas vezes em que aparece, é dita com tal força e com tal intensidade que não podemos deixar de compreendê-la como uma noção fundamental de seu pensamento, noção essa cuja compreensão contribui muito quando se deseja entender o que é uma filosofia trágica.
É em 1882, no início do livro IV de A Gaia ciência, no aforismo 276, que Nietzsche publica pela primeira vez algo sobre o conceito de Amor fati:
“Hoje cada um se permite exprimir seu desejo, seu mais caro pensamento; assim eu vou dizer o que desejo hoje de mim mesmo, e qual foi o primeiro pensamento que preencheu meu coração este ano, um pensamento que deve ser a razão, a graça e a suavidade de toda a minha vida! Eu quero aprender cada vez mais a considerar a necessidade das coisas como o belo em si – assim, eu serei um daqueles que tornam as coisas belas, amor fati: que seja este de agora em diante o meu amor! Eu não vou fazer guerra contra o feio, eu não o acusarei mais, eu não acusarei nem mesmo os acusadores. Suspender o olhar, que esta seja minha única forma de negar. Eu não quero, a partir desse momento, ser outra coisa senão pura afirmação.”
O que há de necessário nas coisas parece ser o fato de que essas coisas são simplesmente coisas, isto é, elementos pertencentes a um mundo que se transforma, que muda, que devém. Afirmação da própria transitoriedade. Amar o que há de necessário nas coisas é amar o que de certa forma não permanece, não pode ser previsto, amar mesmo o desconhecido, mesmo o incompreensível.
Lembremos que beleza para Nietzsche é o que seduz em favor da existência e arte é intensificação da vida e essa intensificação só será possível se a vida for assumida em sua plenitude, necessariamente, mesmo com seus males e dores, mesmo com sua finitude
Ainda a propósito do Amor fati, Nietzsche escreve no Ecce Homo: “Minha fórmula para a grandeza no homem é Amor fati: nada querer diferente, seja para trás, seja para a frente, seja em toda eternidade. Não apenas suportar o necessário, menos ainda ocultá-lo – todo idealismo é mendacidade ante o necessário - mas amá-lo.”[1] Parece ser fundamental essa noção do idealismo entendido como falsidade perante a necessidade. Pode-se inclusive notar também nessa passagem uma certa dimensão ética do Amor fati. Amar a fatalidade é um modo de realizar a grandeza, o homem seria pequeno se sucumbisse diante dela, se resignando ou se tornando indiferente. Amar representa aqui uma condição da criação. O Amor fati é um sim, não é negação, nem indiferença, é um querer. Prefigura, portanto, uma intensa vontade de pertencimento ao mundo, uma vontade transfiguradora e criadora que deseja realizar a vida mesmo em suas possibilidades mais estranhas e difíceis.
[1] Nietzsche, F. Ecce Homo. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.p51
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"Quando não tiver mais nada,
ResponderExcluirnem chão, nem escada,
escudo ou espada,
o seu coração acordará.
Quando estiver com tudo,
lã, cetim, veludo,
espada e escudo,
sua consciência adormecerá
e acordará no mesmo lugar,
do ar até o arterial,
no mesmo lar, no mesmo quintal
da alma ao corpo material."
(Arnaldo Antunes)
Não é Nando Reis?
ExcluirNão é Nando Reis?
Excluir"Quando não se tem mais nada
ResponderExcluirnão se perde nada,
escudo ou espada,
pode ser o que se for
livre do temor.
Quando se acabou com tudo,
espada e escudo,
forma e conteúdo,
já então agora dá para dar amor.
Amor dará e receberá,
do ar, pulmão,
da lágrima, sal,
amor dará e receberá,
do braço, mão,
da boca, vogal,
amor dará e receberá,
da morte o seu guia natal."
(Arnaldo Antunes)
Leia a seção 35 de O Anticristo de Nietzsche, exposição mais explícita do Amor Fati que já encontrei na obras dele.
ResponderExcluirBoa leitura!
Amor contente que senti o amante distante,
ResponderExcluirque se entristece ao retorno à casa,
distante do amante,
dormente amante se alegra,
para o retorno ao amante os dois amantes amor se alegra.