terça-feira, 30 de setembro de 2014

Dioniso diante de Apolo

Agora que acalmaste meu tornado
e que aceitei tua flecha
sobre a minha carne

Agora que me fecundaste com a medida
e que me deste margens
Agora que pousaste a mão
sobre o meu medo

Vês como as palavras nascem de mim
pausadas
e como tornei-me brisa
ateada sobre o pranto?

Desde que me concedeste tua máscara,
deus solar,
a noite que eu trazia
perdeu o gume terrível

Vem, amigo, vem ver
como, mesmo diante do sangue,
tornamos bela
a dor para esses gregos




sábado, 20 de setembro de 2014

rústicos

cercas de arame farpado sob a chuva
alegria nas pedras do lajedo e nos alpendres
fogueira mítica acesa entre escritos rupestres
meninos e meninas nus dançando ao redor
coice de cavalo, vela acesa dentro da geladeira a gás,
açudes de água morna, cactos, carroças
estávamos todos lá antes da luz elétrica
preparados para perdas e recomeços


quinta-feira, 18 de setembro de 2014

nômades tuaregs

estranheza feroz nas cores desse povo
pequenos roubos, hóspedes estrangeiros
noites geladas e escuras
bandos inteiros comendo
arroz puro no deserto
gente querendo fugir para algum outro país
sem perceber que a água estava ali mesmo
era só cavar um poço e encontrar a própria sede

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Memórias de uma puta poeta

Vou-me embora pra Pasárgada
lá sou amiga da rainha
e tenho o homem que quero
na cama que escolherei
sou amiga das medeias, das medusas e das bacantes
Vou-me embora pra Pasárgada
lá as mulheres são livres
tanto as mães quanto as sem filhos
tanto as que amam  mulheres
quanto as que amam rapazes
tanto as que amam os dois
lá os musos são de verdade e descem de Marte
para a terra, lá nem amor platônico tem
é tudo mesmo na sacanagem
Vou- me embora pra Pasárgada
lá as putas não são tristes
como as de Gabriel García Marquez
lá maria transa mesmo com o anjo gabriel
e josé assume tudo
lá existem os josés, psicanalistas e pais incríveis,
vou me embora pra Pasárgada
lá sou amante até da rainha
e  posso voar de parapente
me desculpem Manuel Bandeira e Gabriel  García Marquez
adoro ler vocês
mas amo mesmo é essa nova Pasárgada que inventei

Um poema de Manuel Bandeira

Vou-me embora pra Pasárgada

Lá sou amigo do rei

Lá tenho a mulher que eu quero

Na cama que escolherei


Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada

Aqui eu não sou feliz

Lá a existência é uma aventura

De tal modo inconseqüente

Que Joana a Louca de Espanha

Rainha e falsa demente

Vem a ser contraparente

Da nora que nunca tive

E como farei ginástica

Andarei de bicicleta

Montarei em burro brabo

Subirei no pau-de-sebo

Tomarei banhos de mar!

E quando estiver cansado

Deito na beira do rio

Mando chamar a mãe-d'água

Pra me contar as histórias

Que no tempo de eu menino

Rosa vinha me contar

Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo

É outra civilização

Tem um processo seguro

De impedir a concepção

Tem telefone automático

Tem alcalóide à vontade

Tem prostitutas bonitas

Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste

Mas triste de não ter jeito

Quando de noite me der

Vontade de me matar

— Lá sou amigo do rei —

Terei a mulher que eu quero

Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Desenhos e teletransportes

eram cidades costeiras
mas seus habitantes nem precisavam de mar
podiam ir com navios inventados
fictícios barcos

eram cidades costeiras, costumeiras
de maresia e brisa
trilhas, rios, portos rascunhados

e seus moradores sonhavam
e iam assim a todo lugar

domingo, 7 de setembro de 2014

Ouro Preto em chamas


abrigar-se nessa briga
entre pedaços e cacos
de telhas, janelas, vidraças
desabrigar-se nessa casa imensa
cremada, incendiada
sem voz nem gente
madeiras ardendo
pedras preciosas perdidas
bombeiros vieram de Mariana e BH
movidos a terra, água, fogo e ar
fogueira imensa acesa na praça
dores, mágoas,
escravos, escravas, correntes,
crimes, senhores,
senhoras, perversidades
maldades,
vidas passadas
há séculos
almas queimadas
em labaredas altas




(em memória do incêndio de 2003 no Casarão do Pilão)

sábado, 6 de setembro de 2014

Loja de Mulheres

labirinto que sigo nessa cidade
plena de tantas outras
tecidos e mais tecidos entrelaçados
becos, mercados
lojas de chapéus, botas, saias, brechós
O meu desejo de ancorar ali
na vitrine como um manequim
e esperar por todos os que passam
amá-los todos disfarçada
nesse corpo de medusa sem cabeça nem braços
nesse vestido exposto com seu preço
metade estátua, metade mulher
metade blusa, metade sandália
sou essa fêmea de acrílico lírico na calçada

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Escolha

" Derrubando palavras se chega ao silêncio:
  à terceira solidão, a escolhida."
                  Pablo Neruda



Sem filhos viveram
Lota e Bishop
livres, viajantes, soltas
permitidas uma à outra
num amor de poucas
Solidão vivida, inteira, escolhida
moças raras, voos rasantes,
intensas, amantes, revoltas       

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

L'amour entre tours et tous

Invadi seus passos na calçada
entre a liberdade e a calma
no caminho que fiz até você
o que se ilumina é breve, leve
aceita torres como mirantes
não como calabouços
nem quedas nem prisões
mora comigo uma noite só
e vai embora
certo de que o amor não é uma pessoa, não se prende, não é anel nem arame
nem tem nome próprio, nem fome de um único  soldado civil ou trapezista
nem  muro, nem cerca, nem furo de reportagem, nem filhas, nem família
mas está em toda parte, solto,
raio que vem por dentro e por fora e atinge todos
para além de quaisquer dois e nós,
obsessões,  arranhões
e paranoias
não precisa de bagagens nem de escola
aceita ser miragem entre  faróis, ilhas, milhas
mil vezes sem dor quando decola, não cola, descola
sem amarrações, não gruda, não controla
amor: miragem e saudade entre antenas parabólicas
astros, satélites, cartas de tarot, rainha de copas
jogo, fogo: onde pouco já é muito
e onde às vezes muito é muito pouco