Desse delírio tenho medo
desse delírio que ama e sonha
e me espera atrás do beco
e me ataca pelas costas
e se vinga do meu medo
Desse sonho, dessa viagem,
do nosso amor
tenho medo
quando ele vem sorrateiro
quando atravessa os bueiros
e me pega de surpresa
e me enterra um dardo
no peito
Do seu perdão tenho medo
desse perdão que liberta
e fere mais que a ofensa
e dói muito mais do que ódio
E mesmo com tudo isso
o amor amanhece refeito
nunca, nunca um amor perfeito
mas doído, trucidado
feito de carne e verdade
feito de estranha voragem
quase de cinzas composto
Brasas queimaram meu rosto
mas eu volto livre e amada
com cicatrizes guardadas
Vou voltando, meu amado,
ao nosso amor imperfeito
O que poderia, nesse mundo,
roubar-me a sua beleza?
Nem as feras, nem o bruxos
nem os circos enfeitiçados
nem os meninos mais tristes
nem o fado inexorável
Nem trapezistas ou mágicos
nem a morte, meu amado,
nem os saltos, nem as quedas
nem as fugas mais abertas
nada disso me atormenta
Quero o nosso amor a salvo
mesmo que sejam vorazes
os deuses que ousam matá-lo
Quero o nosso amor humano
mesmo que eu tenha medo
mesmo que seja frágil
nosso amor de porcelana
Mesmo que seja estranho
eu me lanço
delicada como uma borboleta
furiosa como uma lâmina
E uma coragem danada
me leva para os seus braços
um tipo de cegueira
uma escuridão quase acesa
Uma ventania dos diabos
vem açoitando meu corpo
cheio de juventude
E em você eu deságuo
sangro a romã dos seus lábios
desembaraço seus cabelos
alongados
beijo seu corpo forte, alto, iluminado
E permito tudo
absolutamente tudo
ao seu lado
terça-feira, 24 de novembro de 2015
segunda-feira, 23 de novembro de 2015
rústicos
cercas de arame farpado sob a chuva
alegria nas pedras do lajedo e nos alpendres
fogueira mítica acesa entre escritos rupestres
meninos e meninas nus dançando ao redor
coice de cavalo, vela acesa dentro da geladeira a gás,
açudes de água morna, cactos, carroças
estávamos todos lá antes da luz elétrica
preparados para perdas e recomeços
alegria nas pedras do lajedo e nos alpendres
fogueira mítica acesa entre escritos rupestres
meninos e meninas nus dançando ao redor
coice de cavalo, vela acesa dentro da geladeira a gás,
açudes de água morna, cactos, carroças
estávamos todos lá antes da luz elétrica
preparados para perdas e recomeços
sábado, 14 de novembro de 2015
Noturno sobre ponte na Baía de Guanabara
Eu ofereço
esse gosto pela forte chuva nas estradas
Naves, guindastes,
o ferro úmido de todas as coisas
que compõem a paisagem
Ofereço minha pele febril
minha estratégia de vida
Esse pequeno dilúvio
essas águas que vejo inundando tudo
Os mistérios todos à frente
dos faróis do automóvel
O sereno pacto de fazer parte do tráfego
entre grandes cidades
Ofereço a conversão desse desassossego
em trilhas iluminadas
esse gosto pela forte chuva nas estradas
Naves, guindastes,
o ferro úmido de todas as coisas
que compõem a paisagem
Ofereço minha pele febril
minha estratégia de vida
Esse pequeno dilúvio
essas águas que vejo inundando tudo
Os mistérios todos à frente
dos faróis do automóvel
O sereno pacto de fazer parte do tráfego
entre grandes cidades
Ofereço a conversão desse desassossego
em trilhas iluminadas
sexta-feira, 13 de novembro de 2015
Homero
Era missão tua salvar
guerreiros do esquecimento
e depois palavras do abandono
Cantar amores e mortes
com esplendor e encanto
Trouxeste-nos auroras e deuses
sangue e pranto
E era missão tua
abrandar nossas mágoas
com teus cantos
guerreiros do esquecimento
e depois palavras do abandono
Cantar amores e mortes
com esplendor e encanto
Trouxeste-nos auroras e deuses
sangue e pranto
E era missão tua
abrandar nossas mágoas
com teus cantos
quinta-feira, 12 de novembro de 2015
Penas de uma casa em cinzas
Traga-me um copo d'água, tenho sede."
Gilberto Gil
É óbvio que anoiteceu
está registrado em fotos
em minas, em mapas
Não posso trazer de volta o passado
imitando a voz dos mortos
Não posso devolver sua mãe,
sua filha, sua falta
O que há por dentro são gambiarras
madeiras úmidas, telhas e vidraças quebradas
A vida gotejando no balde
e a caixa de amianto vazia
de onde espero toda água possível
para o chão limpo e claro que preciso
Gilberto Gil
É óbvio que anoiteceu
está registrado em fotos
em minas, em mapas
Não posso trazer de volta o passado
imitando a voz dos mortos
Não posso devolver sua mãe,
sua filha, sua falta
O que há por dentro são gambiarras
madeiras úmidas, telhas e vidraças quebradas
A vida gotejando no balde
e a caixa de amianto vazia
de onde espero toda água possível
para o chão limpo e claro que preciso
quarta-feira, 11 de novembro de 2015
O carteiro e a poeta
Não quero deixar de conhecer
Pasárgada, Shangri-lá e Atlântida
ainda bem que daqui de casa
posso ir até lá com asas
ou a nado
vou pela rota contrária
oceano pacífico e feroz
ouço todo dia sua voz
antiga e total
nem preciso de satélite
lá mesmo não preciso chegar
e são tantas cartas, contas, telegramas
há mil anos e séculos
e esperei tanto, tanto, tanto
aqui nesse Rio de Janeiro
que acabei me apaixonando pelo carteiro
Pasárgada, Shangri-lá e Atlântida
ainda bem que daqui de casa
posso ir até lá com asas
ou a nado
vou pela rota contrária
oceano pacífico e feroz
ouço todo dia sua voz
antiga e total
nem preciso de satélite
lá mesmo não preciso chegar
e são tantas cartas, contas, telegramas
há mil anos e séculos
e esperei tanto, tanto, tanto
aqui nesse Rio de Janeiro
que acabei me apaixonando pelo carteiro
quinta-feira, 5 de novembro de 2015
Um pomar no escuro
Remedios Varo
Marimbondos estalando pelo corpo
cacos de vidro verde sobre o muro
mínimos guardiões desse desejo
de furtar teus frutos
e desabotoar essas paredes,
calhas, luzes, rochedos
que dividem e separam
minhas chamas das tuas
Marimbondos estalando pelo corpo
cacos de vidro verde sobre o muro
mínimos guardiões desse desejo
de furtar teus frutos
e desabotoar essas paredes,
calhas, luzes, rochedos
que dividem e separam
minhas chamas das tuas
quarta-feira, 4 de novembro de 2015
imigrantes
No hemisfério norte
era novembro ainda e ela disse que ia embora.
Voltaria ao seu país, à sua terra, aos seus navios e barcos
Como quem não quer nada ele perguntou:
Por que não aguarda o verão?
Ela aguardou:
semanas, meses. anos
Até hoje não decidiram quando é exatamente o verão
nem primavera nem inverno nem outono
nem sul nem norte
nem se existe realmente um país para onde voltar
Desnorteada e sem geografia
respirou
cedeu ao jogo do amigo
toques, massagens, abraços
e tombou inteira em suas mãos
era novembro ainda e ela disse que ia embora.
Voltaria ao seu país, à sua terra, aos seus navios e barcos
Como quem não quer nada ele perguntou:
Por que não aguarda o verão?
Ela aguardou:
semanas, meses. anos
Até hoje não decidiram quando é exatamente o verão
nem primavera nem inverno nem outono
nem sul nem norte
nem se existe realmente um país para onde voltar
Desnorteada e sem geografia
respirou
cedeu ao jogo do amigo
toques, massagens, abraços
e tombou inteira em suas mãos
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