domingo, 18 de julho de 2010

A terra e o fogo

Terra úmida é o que sou
E tua voz me fecunda
Abre fendas em mim
Por onde os meninos vão nascer

Sou essa planície deitada
Sob o vento forte
Esse vale que invades
Sou domínio teu
Tua carne
Cera sob o teu poder

Sou o que queres que eu seja
Enxame, cardume, aves
Noite, noite, noite
que a tua luz esmaga sem vencer


Poema publicado na revista Geologia para poetas. Casa da Ciência/UFRJ.Rio de Janeiro.2009. Iniciativa da poeta e professora de Geologia Maria Dolores Wanderley.
Mais poemas: www.palavrarte.com/equipe/equipe_iracema.php

sexta-feira, 16 de julho de 2010

A Gravidez de Zeus

Mais uma vez houve fúria contra um filho de Zeus. Para salvar Dioniso, o pai guarda o coração do filho em sua própria coxa. Grávido, por fim, traz de volta ao mundo o deus do vinho e da folia. Por esses dias me senti grávida de gêmeos, cada um em uma de minhas coxas, úteros imaginários que talvez representem a força grávida dos que caminham férteis e feridos e não se deixam cicatrizar totalmente. Muitas vezes somos nômades em nosso próprio corpo e a vida pode ser um passeio insólito, estranho, absurdamente belo: os passos de alguém grávido em suas coxas, pernas, em todos os os seus poros e pelos.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Fragmentos sérios da Foliasofia

No quarto livro de A gaia ciência alguns aforismos são reveladores de uma filosofia trágica de Nietzsche e, aproveitando o ensejo de A gaia ciência, contextualizo esse conceito irreverente de foliasofia. Após a primeira fase de juventude de Nietzsche em que tragédia e obra de arte estavam intrinsecamente ligadas temos o momento de maturidade em que a tragédia é ora o risco da total ausência de referências estáveis como o registro da pergunta no aforismo 34 de Humano, demasiado humamo: “mas nossa filosofia não se torna assim uma tragédia?”, ora o início de uma experiência de afirmação da existência. Em ambos os casos um outro aspecto da filosofia trágica se apresenta: O conhecimento trágico como mutável, passível de transformação e reaprendizagem, desconfiado do que é sólido e das opiniões petrificadas. Nesse sentido já no segundo volume do Humano, demasiado humano, em O Andarilho e sua sombra, no aforismo 332, Nietzsche afirmava que não nos faríamos queimar por nossas opiniões, tão pouco seguros nos sentimos acerca delas, mas pelo direito de ter opiniões e de poder mudá-las. Nada impede que haja um deslizamento contínuo em nossas opiniões, não estamos presos a um caráter único, a uma única forma de pessoa, a uma única possibilidade de vida. Ao conceito de alma imortal Nietzsche nos acrescenta a ideia de muitas almas mortais ( viele sterbliche Seelen) que não cessam de se transformar em nós. Essa ideia pode ser encontrada no aforismo 17 do segundo volume do Humano, demasiado humano. Somos enquanto sujeito plural, um feixe de muitas almas, uma multiplicidade. Também a partir do aforismo 305 desse segundo volume, entendemos que para exercício dessa multiplicidade é preciso saber perder-se a si mesmo de vez em quando. Para um pensador seria prejudicial estar sempre ligado a uma só pessoa, a um único olhar, a única forma de ver a vida. Foliasofia , a meu ver, é também uma forma mais plural de filosofar.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Textos críticos a propósito de Lance de dardos

Os dardos poéticos de Iracema Macedo - Marcus Vinicius
Brincos de vagalume para a orelha do livro de Iracema Macedo : Lance de dardos
-Tereza Cristina Cunha
Lance de dardos : poesia e paixão - Nei Leandro de Castro
Dardos que despertam o abismo - Pablo Capistrano
O discurso do corpo ( Anotações à margem de “ Lance de dardos”, de Iracema Macedo) - Nelson Patriota
Um pouco de poesia - Affonso Romano de Sant'Anna

Os dardos poéticos de Iracema Macedo

Marcus Vinicius

O título, com seu jogo de palavras, e a epígrafe da qual ele é paródia são uma falsa pista : a obra não é mallarmaica. Isto não invalida o achado do título, e a leitura dos vinte e cinco poemas de que se compõem o livro vai confirmar que os versos são mesmo dardos, não dados.
Nesta edição, a autora reúne ainda três outras obras (publicadas anteriormente ao lado dos poemas de Eli Celso e André Vesne): “Vale Feliz”(1991), “A Casa”( 1995) e “Brincantes do Reisado”(1998).
Lírica em todos os poemas, Iracema parece se desprender da influência inicial de Adélia Prado, e , se tivéssemos que lembrar outra voz feminina, preferiríamos pensar em Clarice Lispector. Para quem se espantar, recomendamos o ensaio de Roberto Corrêa dos Santos em que ele lê os poemas desentranhados nos romances de Clarice. Certas imagens-pensamento bem poderiam ter sido ditas por ela, como “o amor a tristeza e a aventura de ser carne em meio a tantas pedras” ou “e aprendesse a dormir com as tempestades”. Há ainda em sua obra referências a Drummond e Bandeira, que soam mais como admiração do que como influência. A propósito, a poeta tem uma dicção bastante pessoal. Neste último livro, o lirismo cotidiano parece dar vez a um lirismo incômodo, não reconciliado. Estrategicamente, o sujeito se faz objeto e se oferece sem idealizações e “happy ends” românticos. Vejamos alguns versos: “e ofereço meu corpo para os lobos”, “Não conhecia o esplendor da queda/ nem a violência dos abismos”, “Parece que saí...de algum lugar inóspito...”, “o pássaro assim tão desmedido/poderá espatifar-se no rochedo”, “uma face...para oferecer.../ a todo tipo de amor que atravessar a vidraça e vier me ferir com seus dardos.”
Boa parte dos poemas tem a mesma proposta estética: lida alegoricamente com um tema (normalmente o amoroso) e desdobra-se em imagens metafóricas. A poeta, a partir de uma seleção semântica, intensifica as relações das palavras no plano conotativo. Desta forma, temos a imagística do jogo de cartas em Jogo em Florença, a do mar em Poema do lobo-do-mar e em Canção da mulher que virou barco, só para citarmos alguns exemplos. Já no belo Arthur Bispo do Rosário, ela diz “Bordo delírios em panos...sou apenas/ um arquiteto de miragens” como se falasse por ele. Sua obra não tem a quantidade delirante de Bispo, mas podemos dizer que Iracema é também uma arquiteta de imagens, pois seus poemas se dão sempre no plano metafórico, mas com uma linguagem mais enxuta e inquietante.
Todo texto é um dardo certeiro no leitor que se vê obrigado a pensar-sentir os versos lidos – estas “tempestades onde atracar”. Lírica, erótica, delicada, incisiva, ou questionadora, a poesia de Iracema Macedo se faz com a palavra-idéia, dentro da linhagem dos poetas que têm algo dizer e, ao mesmo tempo, ela desdiz as expectativas, poéticas ou existenciais, do mundo. Seus poemas, cuja qualidade não oscila em momento algum do livro, sempre nos surpreendem e nos fustigam, pois trazem a armadilha de “um coração cheio de vespas.”

Jornal Panorama da Palavra n.11, Rio de Janeiro, junho/julho de 2000.

Marcus Vinicius é professor de literatura e poeta.










Brincos de vagalume para a orelha do livro de Iracema Macedo: Lance de dardos

Tereza Cristina Cunha

Seja qual for o seu credo, leitor, lance o primeiro dardo no poema “Bilhetinho”, prece singular, onde nada se pede ou agradece. Celebra-se, aí, uma tristeza luxuosa: tristeza de um ser já feliz. Diz, assim, o pequeno bilhete: Quando eu morrer/ mesmo em tristeza devastada/ morrerei da alegria de terem sido possíveis/ o amor a tristeza e a aventura de ser carne / em meio a tantas pedras. Feliz porque foi possível, e não necessário, surgir entre minério e mato, muito depois das lavas terem sido domesticadas em rocha. Luxuosamente infeliz, por desprezar o sossego e aspirar mais do que o calor das fogueiras e a fartura da caça. É que Iracema Macedo sabe que “a aventura da carne” não vai longe, não chega ao belo, se o barco repousar por inteiro. Uma parte dela dá vela ao vento, enquanto a outra ressona, atracada no cais: E velejar também velejarei/ Quando tudo estiver quieto neste porto/ é que o restante do meu barco/ já partiu e ousa (Velas).
Iracema sabe que poesia e desejo têm um destino comum: são dardos lançados rumo à experiência do obscuro e do ausente, muito mais arremessados pela louca aspiração ao invisível do que impulsionados pelo medo, pela fome, pela nostalgia. No entanto, não é uma ousadia sem temor que lança Iracema em sua aventura, nem lhe falta o respeito pelos obstáculos. Seus dardos também ensinam fugas e “um modo impecável de se abrigar da chuva”: Como se fossem de mármore/ os dardos duram dentro de mim/ perfeitos/ E aprendi com eles a lançar-me/ e aprendi com eles a ter medo/ a me esconder dos nomes/ fugir das luzes fortes/ e da insensatez dos automóveis”( Lance de dardos). Aprender com os dardos, para Iracema, é deter-se espantada, diante do familiar, sem penetrá-lo; não é aprender a devassar penumbras nem a perfurar sombras. Diante das coisas mais óbvias/ estanco/ como se fossem abismos/ Não aprendi a dar os passos decisivos/ Tenho desejado corredores longos na penumbra/ como nos antigos colégios ( A menina fantasma do internato). A impressão que nos dão estes corredores de Iracema é a de que eles não estavam lá, disponíveis para a aventura da carne. É mais provável que eles tenham sido concebidos pela paixão dos dardos que moldam, ao mesmo tempo, o existente que avança e o espaço que ele percorre, como o menino que, ao empurrar um pneu ladeira abaixo(“Happy Dale”), molda margens para o fluxo imperioso de uma alegria sagrada. A alegria é sagrada, diz Iracema, Tu não vês o rito de alegria na planta e mesmo na ferida, tu não vês um rito de alegria nessa ferida com bordas sagradas em tua perna?(“Happy Dale”). Não há dúvida que a tristeza luxuosa plasmada pelos dardos de Iracema é a alegria daqueles que sabem “afiar seus breus”, “aprontar seus escuros”, para “essa fina luz que dança”. Um vagalume? A carne, em meio a tantas pedras?

Rio de janeiro - RJ Abril, 2000.

Tereza Cristina Cunha é Doutoranda em Ciência da Literatura pela UFRJ.







Lance de Dardos: poesia e paixão

Nei Leandro de Castro

Os três livros anteriores de Iracema Macedo, todos de parceria com Eli Celso e André Vesne, já apontavam para a dimensão de sua poesia, para a beleza e a ousadia dos seus versos, com temas e palavras fortes, pouco usuais na poesia feminina que se escreve no país e, principalmente, na província. É provável que poemas como “Desencanto”, “Mêntruos”, “Clito” e “Arremedo” tenham melindrado leitores mais sensíveis ou os eternos moralistas de plantão. Mas o talento demonstrado por Iracema Macedo, desde Vale feliz (1991), está bem acima dessas susceptibilidades. Ela, antes de tudo, é uma guardiã que vela a paixão e a poesia como vela “as coisas da noite”, iluminada de sonho. Iracema ousa e alcança o que ousa, desde os seus vôos iniciais: “Ousarei com a vela ao vento/ e uma outra vela acesa dentro de mim.”
Na série que dá título ao livro surge com mais vigor e nitidez o arrebatamento amoroso que sempre esteve presente na poesia de Iracema. Nesses poemas parece ter havido uma sublimação do amor fati ( já lembrado por Nonato Gurgel na orelha do livro), ou seja, “o amor que diz sim e que faz de qualquer resultado dos dados uma possibilidade de vida mais bela e mais criadora”. Não por acaso, o amor fati é o tema da dissertação de mestrado que Iracema Macedo fez sobre Nietzsche.
Em Lance de dardos, esse amor vai ao encontro de um Saturno destronado e lançado à terra dos homens; depois se aproxima de Mercúrio, o alcoviteiro dos deuses, para apaziguar suas dores, ao experimentar o “esplendor da queda e a violência dos abismos.” Saturno se traveste de lobo-do-mar, de anjo, de lobo, e vem vindo, não adianta fugir ou se esconder. A bela poesia de Iracema registra: “Saturno me estende a mão e um cálice/ e é como se a vida chegasse/ silenciosa e indolor como os milagres.” Mais adiante, a poeta volta aos ritos saturnais, confessa que transgride tantas leis que já nem sente, para depois reafirmar o seu doce desvario amoroso: “Ah, Saturno, tu me brindas e me usas como queres nesta noite em que o terror está tão próximo do prazer e a beleza travestiu-se tanto de loucura”.
Saturno também pode ser um anjo decaído, um arcanjo louco, que aprendeu a incendiar os sentidos da poeta, que adivinha todos os seus desejos sob portas e vestidos. Por isso, só resta pedir “que me faças assim/ ínfima e sagrada/ muito mais pornográfica do que lírica/ muito mais profana do que tântrica/ muito mais vadia do que tua”.
O amor se esvai? O coração da poeta se cobre de nuvens sombrias, fica cheio de vespas e ela canta: “Um oceano inteiro não basta para calar no meu peito este murmúrio de tantas formas de ardor/ tantas formas de estar banida e só”. Segundo Oscar Wilde, condenado à prisão e à morte pelo amor, os corações foram feitos para ser despedaçados. Talvez valha acrescentar que os pedaços do coração se recompõem como as estrelas-do-mar. Depois de Saturno e seus sortilégios, depois de Mercúrio, que “acende espelhos e inventa silêncios”, o amor fati de Iracema Macedo se volta para o cotidiano dos mortais e sublima o amor imperfeito, num dos mais belos poemas do livro. A paixão está apaziguada, o corpo e a alma suportaram a “ventania dos diabos”, o desenlace vira enlace, o amor se veste de outras vestes. A poesia é a grande vitoriosa: “Quero o nosso amor a salvo mesmo que sejam vorazes os deuses que ousam matá-lo/ Quero nosso amor humano mesmo que eu tenha medo mesmo que seja frágil nosso amor de porcelana”. Na atual poesia brasileira não há registro de um equilíbrio tão perfeito entre paixão e expressão poética, construção de versos e reconstrução da alma sob aquele antigo e recorrente “fogo que arde sem doer”.

Tribuna do Norte, Natal -RN, 05 de Maio de 2000

Nei Leandro de Castro é escritor e publicitário.









Dardos que despertam o abismo

Pablo Capistrano

Nunca levei muito a sério esse papo poesia de gênero. Não encontrava motivos razoáveis para acreditar que o sexo interferia na linguagem. Teria de haver algo de orgânico, de palpável, que pudesse alterar a poesia: hormônios, enzimas, formação do cérebro etc. Shakeaspeare nunca me pareceu mais feminino ou masculino que Safo. Aliás masculino e feminino eram adjetivos que eu não conseguia adequar à poesia.
Eis que começo a mudar de opinião, forçado por fatos como, por exemplo, o livro Lance de dardos (Ed. Estúdio 53) de Iracema Macedo. Já conhecia o trabalho de Iracema de dois de seus livros anteriores, feitos em coletivo com Eli Celso e André Vesne, o Vale Feliz de 1991 e Gravuras de 1995. Nesses dois livros, a linguagem de Iracema já existia em potência, para ser bem aristotélico. De 1998 para cá parece que a potência ganhou forma numa linguagem poética madura e incisiva.
Quando estava lendo os poemas referentes ao período de 1999 e 2000, lembrei que Iracema já estava na altura dos vinte e nove anos, em pleno retorno de Saturno ( movimento astrológico que produz grandes alterações na personalidade e na vida das pessoas). Isso me fez pensar num dia em que discutíamos astrologia e que acabei falando para Iracema sobre esse tal retorno de Saturno, passamos boa parte da conversa especulando sobre o tipo de transformação pessoal que esse trânsito poderia causar na vida dela.
Saturno na astrologia representa o aprendizado, muitas vezes doloroso, que o tempo nos impõe. Saturno transformou a linguagem de Iracema, tornou-a madura, firme, cortante como a foice que Cronos carrega. Foi caminhando por essa maturidade poética que eu compreendi o que as pessoas querem dizer com “poesia feminina”.
Não tem a ver com o lirismo em si, mas com um tipo especificado de lirismo. Geralmente se diz: a Lírica é para mulheres ou homens apaixonados (que não deixam de ser terrivelmente femininos), o épico é para os homens, assim como a filosofia e todos os tipos de formalismo que privilegiam a frieza racional em detrimento do calor das sensações uterinas. Na verdade, acredito que exista um lirismo tipicamente masculino, cheirando a Vinícius e Tomás Antônio Gonzaga e um lirismo tipicamente feminino, anômalo, estranho e assustador, que desconstrói o universo bem ordenado de nossa prosa cotidiana.
Guardadas as devidas ressalvas estilísticas essa lírica me faz pensar em Ana C. e Hilda Hilst. São tempestades passadas a conta gotas. Criando expectativa e ansiedade. Após cada verso e cada linha a ansiedade da surpresa produz medo e às vezes um risinho nervoso de alívio. É assim que li Iracema. Com um pouco de medo.
Na ansiedade de entender as mulheres nós, homens, construímos imagens as mais díspares: desde a da santa piedosa dos cristãos até a portadora do julgamento severo e implacável dos judeus, que sempre aponta para o nosso interior. Graças a Freud, desistimos de entender esses abismos femininos, cheios de tempestades e represas explodindo, plenos de uma força cinética que desconstrói o mais poderoso fundamento lógico.
Iracema joga nesse time e a força de sua linguagem reside justamente em incomodar nossos abismos com esses dardos estéticos que são seus poemas.Se realmente existir uma lírica feminina, a de Iracema é a do wild side. Aquele lado onde a mulher se mostra completamente nua, com seu universo inquietante, líquido e profundo, como só as filhas de Eva e Lilith sabem ter.
Para aqueles que não acreditam em mim e acham bobagem misturar cromossomos, hormônios e enzimas com literatura, leiam a seguir e prestem atenção no modo como Saturno é desmascarado no auge de seu retorno:

Saturno veio colher as romãs
brasas no pomar
Vivo nua pela casa
leio cartas, fecho as portas
Saturno me espia pelas frestas
me sussurra nomes feios
vivo cheia de varais
lampiões e pássaros acesos
Parece que estou esticada entre dois abismos
entre dois homens
entre dois vendavais
Abro a janela
encaro o deus
me vejo nos seus olhos
me vejo dentro dele
Quando é que esses olhos irão me acordar?
Quando é que irão me levar?
Quieto no seu canto
Saturno me estende a mão e um cálice
e é como se a vida chegasse
silenciosa e indolor
como os milagres


Jornal de Hoje, Natal -RN, 9 de junho de 2000

Pablo Capistrano é poeta e professor de filosofia.










O discurso do corpo

( Anotações à margem de “Lance de dardos”, de Iracema Macedo)

Nelson Patriota

“O perigo é nascer, parir, carregar óvulos, útero. ser anônima, inquieta,
inatingível.
arder.
depois murchar, repleta de memória e céu.” Marize Castro

Se o corpo é um interlocutor privilegiado da poesia feminina, como ressaltou a poetisa Maria Lúcia Dal Farra ( ver “Seis mulheres em verso”, in Galo n. 6 – julho, 2000) a poesia de Iracema Macedo é, de certo modo, a confirmação da primazia desse discurso, como se nele se cristalizasse a essência do feminino, ou sua possibilidade de explicação.
Os poemas de Lance de dardos, reunião até agora da poesia de Iracema, são pródigos em discursos a partir da consciência do corpo feminino, com suas implicações, desde as mais ricas em sugestões eróticas, até aquelas que parecem só ratificá-las. É verdade que a própria natureza da sexualidade feminina, com seus ciclos exatos, sugerem uma riqueza de elementos que não têm equivalentes no mundo masculino, de sexualidade linear, retilínea, direta, como regra. É compreensível que quando o homem assuma o discurso do corpo, trate-o como um móvel, um meio previamente reconhecido, e não encontre, assim, motivos para interlocuções demoradas, preferindo interrogar o mundo objetivo à sua volta.
Contrastando com essa ‘simplicidade’ de motivos, o universo feminino ostenta uma riqueza de fenômenos de natureza psicossomática de grande força e respondem por boa parte do “segredo feminino”, dos seus motivos inconfessáveis, como o observou o Freud da maturidade. São temas-tabus. Não se prestam à poesia, facilmente. Sua presença, em certos momentos de Lance de dardos, é inconfundível, consignados que são por um caráter de extrema singularidade. É como se Iracema invocasse para si a isenção de Mozart ( para aproveitar uma imagem cunhada por Clarice Lispector em Água viva). A presença desses poemas corporais, descuidadamente disseminados no corpus de Lance de dardos, causa o paradoxal efeito desestabilizador de um arcaísmo num texto modernista. Ou vice-versa. Mas sendo não um livro, mas um conjunto de livros produzidos ao longo de uma década de poesia, Lance de dardos é um livro pródigo de surpresas e de uma extraordinária riqueza de temas.
Um desses temas é o corpo enquanto móvel de prazer auto-suficiente, narcísico. Como se lê nos poemas “Clito” e “Mênstruos”, por exemplo. No primeiro, Iracema escolhe como designativo de clitóris um ícone que o contradiz: uma abelhinha. Reza o poema: “o corpo sem essa abelhinha ia ser “meio sem gosto/que coisa boa esta carne/ com esta abelhinha dentro/que me leva pelos ares.” O mesmo tom percorre “Mênstruos”, desde seu primeiro verso: “Os lençóis estão limpos apesar dos meus mênstruos”(...) até o último: “apesar da cólica e do sangue que me molha.”
A exposição pública desses temas – a consciência plena da feminilidade- conferem a esses dois temas um lugar à parte na poesia feminina norte-riograndense contemporânea, a despeito das ousadias que animam a poesia de Marize Castro e Carmen Vasconcelos, por exemplo. Mas são ousadias de outra ordem, já assimiladas pelas novas normas da leitura. Não transgridem para além do que a norma sanciona.
Onde Iracema parece se compor com o normativo é na poesia amorosa. Mas um elemento de dissonância perturba a ordem habitual do poema. Em “Idílio”, uma hipérbole eleva a temperatura do poema ao paroxismo:

IDÍLIO

Entre notícias antigas e muralhas
construí com você
um amor feito alucinadamente de palavras
Meus versos seduzem os seus
seus versos aliciam os meus
Coloquei nossos livros juntos na estante
para que se toquem
e se amem clandestinamente
durante as madrugadas

O princípio da realidade( e da temporalidade humana) que percorre certos desvãos da poesia de Iracema Macedo cria outro elemento de estranhamento em sua obra. Nas cinco linhas de “Bilhetinho”, isto fica explícito desde o começo.

BILHETINHO

Quando eu morrer
mesmo em tristeza devastada
morrerei da alegria de terem sido possíveis:
o amor a tristeza e a aventura de ser carne
em meio a tantas pedras

Essa certeza perturbadora da vida como passagem é reforçada no poema seguinte, sustando a respiração da poetisa, como se lê:

SE OS OUTROS ENVELHECEM

Se os outros envelhecem
como dizer que não perdi a juventude?
Tardes como essas houve muitas
e um vivo fervor de bicicletas e borboletas
Quem sou eu para ousar essa juventude
através de um tempo que cansa o rosto do meu pai?
Quem sou eu para ousar a flor e usá-la nos cabelos?
Que mulher eu sou?
O tempo só cria devorando
e não posso ousar contra as dores do parto
Entre o tempo e o nada
onde espichar o leite dos meus versos?

A consciência de ser um ser- para-a-morte assume um tom de desvario nas obsessivas perguntas de “Carpe diem”, que se lê a seguir:

CARPE DIEM

Quanto tempo ainda
entre imbus verdosos
batatas fritas, coca-cola?
Quanto tempo entre retalhos, cacos
detalhes de higiene
pastas, papel, escovas?
Quanto tempo entre raízes
entre livros umbigos figos importados?
Quanto tempo ainda
entre tetos paredes assoalhos
entre taipas palha chão de barro?
Quanto tempo
entre passos laços aço?
Quanto tempo entre silêncio e desperdício
entre fome e ódio?
Quanto tempo ainda entre corpos e afagos?
Quanto tempo
antes do nunca, antes do mármore
antes da cinza?

Estes temas, porém não esgotam o elenco de motivos que enformam esse extraordinário livro de Iracema Macedo. Um apetite para a paródia e para o diálogo com a grande poesia – Manuel Bandeira, Carlos Drummond, Mallarmé, Clarice Lispector e Rainer Maria Rilke são apenas algumas referências iluminadoras de Lance de dardos – tornam esse livro um momento de extrema modernidade da nossa poesia. É, por essas razões, um livro incontornável.

Jornal O Galo, Natal- RN . Ano XII- n.10- outubro, 2000.



Nelson Patriota é jornalista e editor do Jornal “O Galo”.








Um pouco de poesia

Affonso Romano de Sant'Anna

Há poemas montados como ladrilhos
sem vida e há aqueles que fluem

Posto que o nome deste suplemento é Prosa e Verso, hoje é dia mais de poesia do que de prosa. E gostaria que vocês lessem simplesmente alguns poemas sem qualquer comentário. Mas para que nos acostumemos aos poucos, e de novo, com a poesia assim exposta, introdutoriamente direi duas ou três coisas.
Outro dia recebi um livro de uma poeta de Natal, Iracema Macedo. Não quis ler a orelha. Livro, às vezes, é melhor assim, sobretudo o de poesia, você abre logo lá dentro e sente num único verso, num único poema, se a criatura tem poesia na veia ou se aprendeu a fazer poesia, ou nem isso. Então, eu nem sabia que Iracema, que tem lá uns trinta anos, era moça letradíssima, tinha até feito a dissertação de mestrado – “Idealismo e amor fati na estética de Nietzsche.” E levei um baque logo no primeiro poema:

AS VESTES

“Enfrentei furacões com meus vestidos claros
Quem me vê por aí com esses vestidos
estampados
não imagina as grades, os muros
o chão de cimento que eles tornaram leves
Não se imagina a escuridão
que esses vestidos cobrem
e dentro da escuridão os incêndios que retornam
cada vez que me dispo
cada vez que a nudez me liberta dos seus laços ”

Há poemas, há poetas nos quais a gente sente que estão trabalhando com ladrilhos. Vão colando palavras dificultosamente, numa montagem inteligente, apurada, ao final da qual a gente diz: “É, está bem feito, mas falta vida”. Tanto Mário de Andrade quanto Nelson Rodrigues já diziam que a “inteligência” tem estragado a obra de muitos autores. O próprio Mário, às vezes, foi vítima disto.
Diferentemente, há poemas, há poetas que não guaguejam, mas cujo texto flui e nos conduz. É que nesses casos a poesia está soprando do imponderável. E, às vezes, a coisa pode ser tocantemente simples como nos versos de Iracema:

DANDARA

“Eu só acreditava em Drummond:
‘o amor chega tarde’
Não conhecia o amor que fulgura sem aviso
esse que se sabe proibido
o amor que já se sabe perdido desde o início
Eu não acreditava no impossível
vinha tão sóbria, tão cheia de medidas
não conhecia o esplendor da queda
nem a violência dos abismos”

Anotem. Não estou fazendo crítica literária. Estou lendo poemas com vocês. Estou lendo socialmente alguns poemas de uma poeta que ninguém conhece, a não ser a tribo dos potiguaras, lá no Rio Grande do Norte. E ao publicá-la aqui estou erguendo um monumento ao poeta desconhecido. Seu livro “Lance de dardos”, que reúne quatro opúsculos publicados desde 1991, vocês não o vão achar em livraria, porque o sistema, quer dizer, não é sistema, sistema é outra coisa, melhor dizer o esquema literário é perverso e nem sempre premia os melhores. Mas não é por isto que não vou citar essa Iracema, que nem conheço e que adoçou meus lábios com poesia.
Outro dia Nei Leandro de Castro, um dos caciques da tribo poética dos potiguaras mandou-me seu bom “Diário íntimo da palavra”. Ele que, entre outras publicações, tem um insólito livro de poesia erótica( “Era uma vez Eros”), enviou-me livros de outros bons poetas lá de Natal. Lembrei-me de outra colônia de bons poetas, lá em Aracaju, que Alberto de Carvalho apresentou-me no CD “A voz, o poema”.
Não, não vou citar nomes de poetas marginalizados. Isto já seria outra crônica.
Outro dia adverti numa entrevista, quando me perguntaram sobre essas três antologias de cem poemas/poetas do século XX, que se deveria fazer uma quarta antologia com o nome de muitos como Iracema. Seria o obelisco ao bom poeta desconhecido.
Não sei se ela vai desenvolver o projeto de uma obra poética. Estou apenas pinçando a poesia que sobrenada nesse arquipélago cultural cheio de ilhas de si mesmas exiladas. Poesia que dá prazer de ler.
E, para terminar, fiquemos de novo com a poesia de Iracema:


POEMA DO LOBO DO MAR

“Como proteger-me desse lobo que vem vindo
Em que ilhas poderei me ocultar
em que barcos ousarei fugir
desse lobo que domina os barcos e as ilhas?

Reúno roupas negras faca escudo
De que adianta enfrentá-lo do meu jeito
se ele me despe do jeito que ele quer?

Como proteger-me dessas ondas
de prazer que ele traz em suas brisas
De que vale feri-lo com meus versos
De que vale me lançar ao mar

Se não há como esconder-me de mim mesma
do exílio que sinto quando fujo
da vontade que tenho de ficar?”

Jornal O Globo. Prosa e Verso, 14 de abril de 2001




Poesia.net 193

São Paulo, quarta-feira, 13 de dezembro de 2006

Caros amigos,

Neste número, o poesia.net entra em seu quinto ano de circulação. Desde o boletim número 1, distribuído por e-mail em 12 de dezembro de 2002, centenas de poetas já passaram por essa modesta página semanal. Vê-la completar quatro anos é motivo de contentamento para mim. Porém melhor ainda é encontrar razão para acreditar que há, sim, algum lugar para a poesia e que faz sentido continuar por mais algum tempo. A todos que vêm acompanhando o poesia.net meus sinceros agradecimentos pela companhia nesta jornada.

...

Confesso que fico tomado de entusiasmo quando descubro um novo poeta. Descobrir, aqui, não tem o sentido pretensioso de “ninguém viu, eu vi primeiro”. Tem, antes a idéia de “como é que eu não havia notado?” É com esse tom de descoberta que trago a vocês a poeta potiguar Iracema Macedo, escritora que me foi apresentada virtualmente pelo poeta juiz-forano Edimilson de Almeida Pereira. Nascida em Natal, em 1970, Iracema leciona filosofia na Universidade Federal de Minas Gerais.

A autora estreou na poesia ao participar da coletânea Vale Feliz, publicada em 1991 em parceria com Eli Celso e André Vesne. Quatro anos depois, e como os mesmos parceiros, ela integrou nova antologia, Gravuras. Em 1998, marcou presença em nova obra coletiva. Ceia das cinzas, também na companhia de Eli Celso e André Vesne. Seu primeiro livro-solo foi Lance de dardos, que saiu em 2000.O trabalho mais recente de Iracema é Invenção de Eurídice, de 2004.

Todos os poemas incluídos neste boletim vêm do livro Lance de dardos. Trata-se de um volume que, na minha opinião, está entre o que surgiu de melhor na poesia brasileira nesta primeira década do século XXI. O título obviamente brinca com o “lance de dardos”de Mallarmé. Mas, ao contrário do que sugere, a refer6encia ao poema experimental do poeta francês não leva a uma poesia construtivista.

Os dardos de Iracema Macedo são atirados por uma poesia solar, emocionada e nitidamente feminina. Em literatura, quando se escreve o adjetivo “feminina”, corre-se o risco de conscientemente ou não, chancelar uma certa visão machista. Não é disso que se trata, aqui. Reafirmo o que disse no início: Lance de dardos é um dos melhores livros de poesia lançados desde o ano 2000. Creio que os poemas transcritos ao lado, por si sós, são capazes de provar isso.

Mas, feminina, sim. O que se descobre nesses poemas são vozes femininas. Leia-se, por exemplo, “O retorno de saturno”: “Saturno veio comer as romãs/brasas no pomar/ Vivo nua pela casa/leio cartas, fecho as portas”. Em “Idílio”, é também uma mulher que, apaixonada, ama clandestinamente por meio dos livros.

Mas atenção: não estamos falando de mulheres ingênuas. As múltiplas personagens femininas que habitam a poesia de Iracema são rebeldes, enfrentam o mundo e tentam molda-lo do seu jeito. Uma delas, atrevida, tem reposta na ponta da língua para o Anjo Gabriel: “peço-te afoitamente/ que me faças assim/ muito mais pornográfica do que lírica/ muito mais profana do que tântrica/ muito mais vadia do que tua.” Aqui, o anjo – dominador e masculino – é bem direito e conforme. Gauche é ela, a mulher, que impõe sua regras no jogo.

O poema do anjo Gabriel comunica-se com este outro, “O Horto”, que vale transcrever na íntegra:



O HORTO

Juazeiro, Juazeiro
o peso de tanta gente
vou levando na ladeira
imagens estilhaçadas
cacos de virgens Marias
santos decapitados
braços e pernas de gesso
corações de cera
partes que foram curadas
estilhaços de um guerra
mulheres vestidas de preto
dentro de mim vou levando
cruzes pesadas, romeiros
e uma capela de Santa Clara
acesa dentro do peito


O ambiente parece ser Juazeiro do Norte, cidade do Padre Cícero e de tantos pedidos às potências celestes. As “imagens estilhaçadas/ cacos de virgens Marias” seriam ao mesmo tempo os ex-votos e as próprias romeiras, carentes, em busca de milagres.

As personagens femininas desses poemas, sempre mulheres, vão desde a dona Chica da canção infantil “Atirei o pau no gato”até essas criaturas em brasa que abrigam nos braços a ventania de Mercúrio. Mulheres com “o coração cheio de vespas”. Eis um lirismo que, embora amoroso, não tem o dom de acalentar, mas de ser incômodo. Talvez uma das mulheres de Iracema Macedo explique tudo. É Carmen. Auxiliar do atirador de facas, “ ela recebe os golpes um a um/ Arremessos de perda, luxúria, ciúme.”

Um abraço de aniversário, e até a próxima.

Carlos Machado





A vida num lance de dardos

Viviane Milward Azevedo

http://jornalaldrava.vilabol.uol.com.br/artigos/



Como se fossem de mármore
Os dardos duram dentro de mim
perfeitos
E aprendi com eles a lançar-me
E aprendi com eles a ter medo
A me esconder dos nomes
Fugir das luzes fortes
E da insensatez dos automóveis
Aprendi com os dardos
Uma espécie de vida iluminada
Uma sutileza para arremessos
Estratégias de ataque
Fugas
Um modo impecável de me abrigar da chuva
E aprendi também uma crueldade
E uma coragem toda feita de começos.
(MACEDO:2000,36)



O poder de libertar o corpo e a alma, dançando com as bacantes, em pleno delírio de sacra orgia. Este que se atenua ao defrontar-se com a possibilidade do amor tardio, tornando a mulher refém do homem amado. Refém e pitonisa de histórias passadas e futuras, já que o presente só o amor conduz. E nesse lançar de dardos tirar a lição para a vida de uma coragem toda feita de começos.

Essa é a magia do livro de poesias de Iracema Macedo. Magia nordestina que, agora, se instala nas paisagens mineiras. Para nosso prazer, aldravistas ou não, Iracema veio lançar seus dardos por aqui. Dardos delicados, dardos agressivos, como se fossem de mármore causam um arrepio na espinha. Dardos que em Minas, nos põem perante o risco de não mais vivermos sem essa palavra cantada, cheia de cores do nordeste, do Brasil, do mundo. Mundo mulher, mundo menina, realizado pela palavra coisa, palavra som. Esse é o tom do livro de Iracema. Essa poetisa que traz a poesia desde o nome, conseguindo transformar em viagem poética toda a sua vivência fêmea do mundo macho, sempre a procurar o seu porto. Mostrando um eterno desejo de repouso, de âncora:



Cada vez me afoito mais
E não encontro margens
E não encontro porto
Só encontro tempestades
Onde atracar
( MACEDO:2000,26)



A brincadeira de signos e sentidos inicia-se na capa, a qual representa delicadamente um dardo, leve, suave, mas que sabemos poder perfurar os vários mundos de uma mulher, o coração de vários homens. Dardo que pode furar o ventre da vida, mas que também capacita no jogo sutil dos arremessos de palavras e sentires. Mas, não se engane o leitor com a aparente simplicidade de seus versos, por trás dessa roupagem simples há uma complexa riqueza. É preciso embarcar de olhos bem abertos com toda a sensibilidade e percepção de pele:



Matei o gato, mamãe, matei o gato
mas o gato, mamãe, não morreu
passou o resto da vida
atravessando a sala
ensanguentado
Dona Chica não se espantou
e disse em tom muito sábio:
Esse bicho, Marília, não morre nunca
ou você foge ou finge suportá-lo
(MACEDO, 2000,49)



Iracema vem comprovar que não existe uma escrita só de mulheres, como afirmam alguns curiosos literários, pois sua escrita não marca o gênero, só a vivência do corpo, da alma, do sexo. O sujeito poético que se mostra nesses versos é um ser assexuado: mulher-homem-mulher. Há a permissão para o assujeitamento feminino perante a masculinidade do homem amado e desejado. Sujeição superficial, que domina a fera-homem. Mulheres que se fazem dominadas para conquistar seus homens. Fazendo-os fortes mesmo na fragilidade:



Quando o homem sobre mim
Fizer a cara do gozo, estarei velando
Velarei como uma viúva, como uma freira
Como uma puta
(MACEDO, 2000,111)



A poesia de Iracema é um passeio pela vida da mulher frágil, forte, indefesa e fera. Mulher que se espanta com a pressa do tempo, mas que se entrega ao prazer do corpo e da alma, se libertando de preconceitos feministas ou machistas. Ela não busca uma doutrina, uma falsa ideologia-mulher, simplesmente se mostra como se vê. Um ser de lado diversos, que se deixa prender pelas armadilhas do sentir, mas que é audaz o bastante para devorar a carne de quem a fere. E essa força ela expõe quando nos conta que enfrentou furacões com vestidos claros ou quando recorre a Drummond para comprovar os desvarios da chegada do amor maduro.

Passear pelas trilhas de Lance de Dardos é participar de um ritual de vida. E se predispor a encontrar a si mesmo, sem medo dos arranhões que esse passeio possa causar a nós leitores. Esse livro é um brinde à vida, é um convite à busca do ser feliz e inteiro:



Há tantas danças e os rituais. Tu não vês o rito de alegria
na planta e mesmo na ferida, tu não vês um rito de alegria
nessa alegria com bordas sagradas em tua perna?
(MACEDO:2000,109)

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Amor e guerra I

Penso em guerras vividas pelos seres, doces invasões dos nossos amores, dos amores dos outros, dos nômades e errantes nessa vida. Feridas cálidas que cobrimos com pétalas. Com delicados esmaltes cobrimos nossos profundos ferimentos. O tempo fere, o prazer fere, tudo que é vivo fere. Às vezes a guerra mais amorosa pode acontecer numa simples noite de inverno e não seremos conderocadas por isso.

Amor e guerra

Texto de um personagem masculino de Anais Nïn, do livro " Uma espiã na casa do amor"
" Eu dormia com a guerra, antigamente todas as noites a guerra era minha amante. Tenho profundos ferimentos de guerra em meu corpo, como você nunca teve, uma proeza militar pela qual jamais serei condecorado".
Baubo - Mitologia grega
Segundo a lenda, a deusa Deméter estava desolada com o desaparecimento de sua filha Perséfone. Em sua peregrinação e tristeza encontrou Baubo, personagem mitológica que soltava uma risada pela vagina. Deméter curou-se de sua tristeza através do poder dessa alegria. A lenda continua com o desfecho do rapto de Perséfone por Hades, mas, a meu ver, o mais instigante nessa estória é o poder feminino de suscitar a força, o riso, a intensidade da vida mesmo nas circunstâncias mais adversas e também a ideia de que uma força feminina pode curar outra, nem sempre a feminilidade é signo de rivalidade. Mulheres, amem-se umas às outras!
"Que seja considerado perdido o dia em que não se deu uma risada"
Nietzsche parodiando Chamfort