terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Baía Formosa

A mulher doida me aponta a faca
e me fala
Me chamem da pior rapariga mas
não me chamem de tira-gosto
O burro pertinho comia melancias
Não sei por onde começar essa mulher
com saia vermelha e vassoura
Viver não tem início
A mulher escreve o nome na areia
é Anelita é doida
Estamos no alto da duna
Eu e a doida
eu que também sou Anelita agora e tanto
pois que o mar que nos cerca nos ajunta
Estamos dentro da onda
Eu e Anelita
Ela com sua faca, eu com aquele chapéu da Bolívia
Eu e ela emboloadas
Eu e ela vamos ser queimadas juntas?
A lâmina de sua faca e a lhama do meu chapéu?
Ninguém viu
Nós não rimos, mas no fundo rimos
a mulher doida e eu
a doida e a moça descompassadas
Rimos assim dos nossos rumos incertos
dos remos que nós não temos
para atravessar essa baía tão vasta
Rimos dos nossos crimes
enquanto o sol ia arder do outro lado do mundo
enquanto o menino veio e levou o burro
nós ficamos ali amedrontadas e francas
Há um silêncio nas ruas,
Anelita doida,
um silêncio como a falta de dentes em tua boca
eu vi meninas brincando
fingindo que um bolo de barro
era um bolo de aniversário
vi sacos de carvão empilhados
e pombos no telhado
E tu, Anelita, és mera como isso tudo
e apaixonante como essa chuva
à noitinha
molhando as hortas
Este foi o encontro da mulher doida e eu
sobre a duna
era novembro em Baía Formosa
eu e Anelita, para sempre juntas

domingo, 2 de dezembro de 2012

Dezembro

Mulher, mulher
não vê que eu tô na paz
vamos sambar um pouquinho
vamos descer comigo
solta esse cabelo, põe uma flor
pegamos o teleférico e depois o metrô
Chama a galera toda
todo mundo no liquidificador
Vamos sambar na praça São Salvador
quem sabe a gente se salva
com o samba na causa

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

A beleza má



                                                                       



    Após algumas leituras do filósofo francês Gilles Lipovetsky,  autor de livros  como A terceira MulherA era do vazio, Sociedade da decepção,  sugiro alguns pontos de conversação  sobre o pensamento da feminilidade no cenário do pensamento  a respeito do sujeito contemporâneo.

    Lipovetsky insinua algumas imagens para pensar o feminino. Na fantasia elaborada pelos homens e seus mitos, a  primeira mulher aparece na antiguidade associada ao caos, ao funesto, ao trágico, ao terrível. Força que amedronta os homens, celebrada pela fecundidade mas com uma beleza associada à maldade, não é ainda de  modo algum o belo sexo, a imagem de ternura e bondade que se consolida no Ocidente, segundo ele, a partir das pinturas renascentistas.

      Essa seria a “segunda mulher” sagrada, cantada pelos poetas, celebrada pela arte na fantasia masculina. Além dessas duas imagens do feminino que, de alguma maneira, ainda podem perdurar na cultura atual, hoje teríamos uma terceira mulher, cada vez mais inventada por si mesma, mais distante da criação masculina e mais criadora de si própria. No entanto, envolvida no cenário da subjetividade contemporânea cujos desafios partilha igualmente com os homens.

    Apesar  dos louvores aos encantos femininos, nas representações da Grécia antiga a beleza viril teria uma marca superior  à beleza feminina, inclusive a famosa Vênus de Milo tem algo de andrógino. Mas  sendo essa beleza entendida como beleza má,  a mulher está longe de se colocar no alto das representações de excelência da cultura. Helena enseja a guerra de Troia, Pandora  solta todos os males para a humanidade. As artimanhas de Afrodite, os ciúmes terríveis de Hera, a maldição da Medusa, o caos apaixonado representado por outras figuras como as bacantes e Medeia. Tudo isso nos mostra a mulher ,em geral, representada como astuciosa, mentirosa, um perigo que se insinua e se oculta sob aspecto sedutor, portadora da desordem, sua única dignidade é a procriação, nada de grandioso  ela traz à civilização. Essa beleza não poderia ser cultuada com a mesma ênfase que a beleza viril, pois é pérfida, nefasta, ardilosa. E, posteriormente, na representação cristã, Eva é a autêntica porta do diabo.

                                                                 Botticelli                                        

     Na cristantade, só a virgem Maria cujo culto e cujas representações iconográficas se intensificaram a partir do século XII possui a inocência da beleza, mas ela é cultuada como virgem e mãe de Cristo muito mais do que como mulher. A mulher na arte medieval continuaria sendo representada como raiz do mal, como “ arma do diabo”. Para se  emancipar dessa  tradição de maldição seria preciso que a própria arte tivesse uma finalidade não mais religiosa e que a beleza feminina ganhasse outro significado.

      Segundo Lipovetski, é a partir da Renascença que a mulher ganhou efetivamente os contornos do que poderíamos então chamar o belo sexo associado à perfeição moral. Beleza e bondade feminina se conjugam então como aspectos gêmeos de uma mesma realidade. Ainda que a primeira mulher portadora da malignidade e da desordem selvagem não tenha deixado de habitar o imaginário cultural, inicia-se o reino da prioridade da beleza feminina. Basicamente na criação dos poetas e dos pintores sem que isso significasse efetivamente uma promoção social e intelectual.

                                                                    Tiziano
     
  Nos séculos XV  e XVI , marcados pelo humanismo, a beleza das mulheres passa a ser estimada e admirada como elevação espiritual , a vênus de Boticelli ilustra de modo exemplar essa nova  afirmação da beleza feminina. Lipovetsky escreve:

 “ Vênus substitui a virgem. Com a ressalva de que lhe toma emprestados os traços específicos, a pureza, a doçura celestial. Aérea, de uma graça linear e fluida, a Vênus do pintor florentino está impregnada de pudor, de vida eterna, de uma expressividade comovente,  seu rosto se assemelha mais a uma Madona do que ao das deusas antigas.”

       Em outras pinturas, as Vênus deitadas nos fazem pensar em uma mulher cujas forças terríveis foram apaziguadas,  diferentemente da beleza meduseia e das deusas que se vingavam de quem via sua nudez, como Atena se vingou de Tirésias cegando-o,  a mulher deitada e adormecida pode ser contemplada na pintura, é a representação da tranquilidade, da passividade  e brandura. Maneira de torná-la acessível aos sonhos dos homens. Exaltada nos círculos cultivados e ricos, a cultura do belo sexo se instalou mas não se universalizou. Para o pensador francês, durante cinco séculos, essa cultura permaneceu elitista e aristocrática.

                                                                    Manet
                                                        
     
    No século XIX, com a literatura decadentista volta a ter relevo a mulher maldita, funesta, bela  e impura. Personagens como a cigana Carmen ou a beleza do mal em Baudelaire voltam a acentuar a beleza demoníaca da mulher associada ao trágico, à perversidade e à morte, levando o homem à perdição e ao caos. Assim como a beleza celeste a beleza maldita de vez em quando reaparece no cinema com o estilo das vilãs  e da beleza vamp. Mas o que sobretudo passa a ter vigência  e nas representações culturais do século XX., segundo Lipovetsky, a partir das décadas de 40 e 50 é um novo estilo: A beleza pin-up muito mais lúdica que tenebrosa, muito mais destinada aos amores sem conseqüência que às paixões devastadoras, presentes nos calendários, nos painéis publicitários, no cinema. Esbelta, elegante, saudável, sorridente se parece mais com uma boneca brincalhona, cheia de vitalidade jovial, afastou-se de qualquer vínculo com o terrível e o trágico. Beleza  cuja visão mais eloquente é Marylin Monroe, embora ela mesma entrecortada por seus próprios dramas. Como se o poder terrível da beleza feminina tivesse se interiorizado e se voltado contra as próprias mulheres.    
 
  E agora nos vemos diante do boom da beleza, o culto do belo sexo entrou na era das massas, perdeu sua raridade e invadiu a vida cotidiana, democratizou-se e tomou conta da vida das mulheres em geral. Vivemos a febre de um ideal de beleza-magreza-juventude e algumas feministas chegam a pensar em um contragolpe: no momento em que as mulheres se libertaram de coerções sexuais, religiosas, sociais, domésticas, estariam de novo aprisionadas. Após a prisão doméstica, a prisão estética seria nossa condição. Porém, segundo Lipovetski mais que uma desforra estética machista, a nova situação da beleza exprime mais que tudo a tecnização do real, o triunfo da razão que caracteriza a modernidade tomou conta também da aparência, tornando-a passível de controle e posse, atingindo embora em escala menor, também os homens.

    Como já mencionei,  ele analisa que a beleza arcaica que amedrontava os homens hoje pode ter se tornado uma forma fantasma de amedrontar as próprias mulheres. Vivida hoje mais como coerção ela se instalaria numa espécie de totalitarismo, de biopolítica muito condizente com todas as prescrições relativas ao corpo. A terceira mulher emancipada, criadora de seu próprio destino, passa a ser talvez também um desafio para as mulheres diante dos impasses das coerções atuais da mídia-publicitária-democrática. E aqui homens e mulheres se deparam com a subjetividade contemporânea delineada por Lipovetsky em outros de seus livros como um sujeito deserto.        
       
                                
                                       
 
Nada contra a beleza pin-up, contra a vida confortável e saudável. Podemos ser beneficiados pela técnica mas podemos também manter acesa a inevitável dimensão trágica da vida. Me soam bem os versos de Paulo Leminski quando nos diz  que um homem e, no nosso caso, uma mulher com uma dor é muito mais elegante.
         

domingo, 18 de novembro de 2012

Camila

Camila, eu te amo
só vivo pra você,
os filhos, o  táxi e o lava-jato
deixa dessa wave
já aprendi a dizer
não bata a porta, please
sou homem trabalhador
faço aspiração simples
dupla aspiração
polimento com cera líquida
polimento cristalizado
troco pneu que é uma coisa
vamos pro motel dreams
tem cinco corações na propaganda
nós e nossos três filhos
tô cheio de amor para dar
Camilinha, deixa disso
manera comigo
Assinado: Wellington

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

GPS

favela buraco quente
favela coreia
favela indiana
morro da cruz
morro da casa branca
morro dos prazeres
morro quieto
morro do telégrafo
morro da liberdade
morro da providência
favela dona marta
favela do borel
favela conjunto residencial
dos servidores municipais
favela bela vista da pichuna

favela avenida
favela tremendê
favela céu azul
morro do dendê
morro do alemão
morro da baiana
favela mangueira
morro do bananal
favela babilônia
favela cerro corá
favela guararapes
favela borda do mato
morro dos cabritos
morro dos macacos
morro dos urubus
ladeira dos tabajaras
favela do rato
perto da rua iracema

domingo, 11 de novembro de 2012

parede, parada, pandeiro

a mulher anda doida comigo
achando que eu tô atrás de piranha
só porque toco pandeiro
ganho cachê de setenta reais
e ela não pode ir
tá querendo me bater
não fala nada não que ela bate mesmo
me bater é mole
quero ver é pagar minhas contas
fui do tráfico, da vigilância
capoeira na terra firme
agora estou na construção civil
tenho cartão de crédito
foi a pior coisa do mundo que inventaram
tô  todo endividado, mas hoje é domingo
bebo um pouquinho, fico embrasado
internet? não uso essa parada não
a mulher tá vindo aí, fudeu, fui
depois volta aqui que eu vou
arrumar uma parede neurótica
para você mandar um poema
valeu ?

domingo, 4 de novembro de 2012

Calipso

Quando voltavas à tua casa
era de mim que partias
eram minhas as ventanias

Invoquei tormentas
potestades marinhas
qualquer coisa para quebrar teu rumo

Mas uma frágil canoa
foi mais forte

Eu conhecia feitiço, gozo, beleza

Nada que impedisse
um homem de um regresso

virei uma ilha, estilha, estame
uma fêmea estéril entre as ondas

E nem sabia como ser errante
para encontrar uma pátria
para inventar um porto
onde enterrar tua perda



Poema publicado em Invenção de Eurídice, 2004.

sábado, 3 de novembro de 2012

Dioniso diante de Apolo

Agora que acalmaste meu tornado
e que aceitei tua flecha
sobre a minha carne

Agora que me fecundaste com a medida
e que me deste margens
Agora que pousaste a mão
sobre o meu medo

Vês como as palavras nascem de mim
pausadas
e como tornei-me brisa
ateada sobre o pranto?

Desde que me concedeste tua máscara,
deus solar,
a noite que eu trazia
perdeu o gume terrível

Vem, amigo, vem ver
como, mesmo diante do sangue,
tornamos bela
a dor para esses gregos



Poema publicado em  Invenção de Eurídice, 2004

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Nietzsche e a serenidade grega




(...) A interpretação nietzschiana para o conceito de serenidade grega será desdobrada em diversas perspectivas. De um lado, o equívoco estético que a tradição teria cometido derivando a concepção da origem da arte grega apenas através da miragem apolínea. De outro lado, o modo como essa pretensa serenidade degenerou na serenidade teórico-socrática, entendida como conforto não ameaçado, como serenidade proporcionada pelo conhecimento que seria, na visão de Nietzsche, a base do otimismo frívolo na arte e do otimismo teórico na ciência.

      Diante desse problema, a hipótese nietzschiana é extremamente fecunda. Segundo o pensador , a chamada serenidade ou jovialidade grega não era senão uma máscara apolínea diante do abismo terrível da existência representado por Dioniso. Ou seja, a tal  " cor rosada" da jovialidade grega foi uma estratégia que esse povo teria encontrado para tornar a vida suportável diante do fundamento do ser como contradição e dor.

     A imagem usada por Nietzsche é a ideia de Goethe de uma cruz coberta por rosas. Teríamos a dor do mundo expressa pela cruz, e as rosas como delicada superfície sobre a qual nos apoiamos para mantermos nossa fé e nosso amor pela vida. Dessa forma, todo o pendor dos gregos para as festas, para as celebrações religiosas, para a transfiguração da dor na obra de arte trágica não seria senão a estratégia genial de um povo para escapar do absurdo da existência e de um possível desencantamento do mundo. Uma estratégia para evitar tanto a fuga para o nada dos indianos como o apego material e militar pela vida que se expressou depois no Império Romano.

    Os gregos ter-nos-iam então proporcionado esse grande ensinamento de gratidão pela existência, de afirmação incondicional e festiva da vida e nos teriam mostrado que, ao ser transfigurada em beleza, a dor não conta como objeção à vida, mas, ao contrário, serve de estimulante e torna a existência ainda mais fecunda. Não por acaso, o filósofo termina seu livro O nascimento da tragédia com a exclamação do quanto precisou sofrer esse povo para vir a ser tão belo.

 Iracema Macedo in trecho de capítulo" Sobre a noção de serenidade no pensamento de Nietzsche" publicado em O cômico e o trágico. Rio de Janeiro: editora 7 letras, 2008.

domingo, 28 de outubro de 2012

Manobras de atracação e desatracação

Goya





quase não lembro deles
antes de serem capturados
pela lenta escuridão que os afastou
de todas as possibilidades lúcidas

mesmo nesse lugar quieto,
administrado, envidraçado,

com luzes fluorescentes,
a hesitação faz a ronda

há ainda nuvens, cegueiras
a tristeza de uma pele diante da outra
um rosto diante do outro
e as bocas de todos que falam
sufocando seus desastres

domingo, 21 de outubro de 2012

Zarabatanas

                                                           Jason Martin

Ninguém esperava mais
por esses cabelos imensos
por esses olhos de fera
esse meu ar de arco e flecha
Zarabatanas eu faço
com mãos de índio bravo
ponho o curare na ponta
paraliso os ventos errados
e só atraio belos raios

sábado, 13 de outubro de 2012

Luísa




                                                                       Combone
                                      

Não sou precisa
nem sólida ou líquida
Sou matéria que hesita
entre muitas feridas
Não sou precisa
não tenho fórmula
não me equaciono
não tenho lógica,
meu caro,
lamento
não tenho siso nem senso
e ando vestida de vento

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Arthur Bispo do Rosário

                                                                                                                  
                                                                         a João Marcelino




Me prendam que estou
me transformando
em rei em verso em canto
Que venham as virgens em cardumes
Que venham moinhos e gigantes
Por onde passo as coisas
hesitam por seus nomes
tal a minha fúria
Vestem-me de louco
mas sou apenas
um arquiteto de retalhos

Enquanto outros acendem
lampiões   estradas   pontes
acendo reinos  dulcineias  cartas
Bordo delírios em panos
De tudo que acho perdido
teço um manto e um sonho
Chamam-me de louco
Quem venham as virgens em cardumes
Sou apenas
um arquiteto de miragens

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

As Vestes


TRAMAS  :  Recital de música e poesia com autores variados. Casa da Ribeira, Julho de 2012, Natal-RN. Interpretação teatral de Clotilde Tavares,  canções na voz de Heliana Pinheiro  e guitarra de Joca Costa.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Prisões

Antes eu era o incêndio
agora faço seguro contra fogo
contra roubos

Eu mesma era furacão
eu mesma roubava
agora apaziguo tudo e tranco

Antes eu era as perdas
agora sou vista pelo bairro, precavida,
comprando cadeados sob medida

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Vestuário de Sísifo

                                                               Nino Cais


estou repetindo as roupas
como se fossem farda
como se fossem fardo

estou refazendo a família
o álbum de atos ratos
e retratos

e todos os demais
hábitos e fracassos

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Amar, verbo atemporal






 

"Abrangendo a produção literária de cinco séculos, a coletânea
 de poesia  Amar, verbo atemporal apresenta o que nenhuma
 outra jamais conseguiu:um verdadeiro mosaico das mais
 variadas e distintas interpretações líricas
 do amor. Organizado pela poeta e tradutora Celina Portocarrero,

 o livro reúne 50 poemas de autores clássicos,
 nascidos entre os anos de 1623 e 1897,
 e mais outros 50 inéditos, de autores nascidos entre 1936 e 1989, 
traçando em cores diversas uma ampla radiografia
 do sentimento amoroso,
 colhida de todos os cantos do país 
e abarcando os principais momentos da poesia brasileira."

Obs: Entre os autores nascidos no RN, fui incluída juntamente com a 
poeta Goimar Dantas. http://poesia-potiguar.blogspot.com.br 

Inicio

sábado, 8 de setembro de 2012

Corveta

                                                              Bispo do Rosário (Veleiro)
          
                      

                                                                            para Arthur Bispo do Rosário

No estaleiro
consertando presságios,
crianças guardadas e briquedos,
estacionei com âncoras e garras

pousei com ossos frágeis, radiografias
plumas inchadas pela chuva

esperando voltar aos mares
sanguíneo
voraz
refeito de todo dano
respirando de novo pelos panos

domingo, 2 de setembro de 2012

paixão no muro


                                                  



com o forte cheiro do spray
me pintas os trajes, os cabelos
com essa tinta fria
me queimas as faces e os dedos

sem luz, descalça
colada à orla da noite
vencida, mas levemente calma

siderada estou sob tuas armas

domingo, 22 de julho de 2012

hidráulicos




a infiltração no gesso
gota a gota no ritmo
sossegado do peito
sangue cristalino
se esvaindo no corredor
a vida transbordando de tal jeito
que nem os canos de ferro, os cadeados
gavetas, armários
nem chaves nem senhas
poderão voltar a rasgar

eis-nos todos infiltrados
enredados
ligados de tal forma
que nenhuma tesoura ou navio
voltará a trancar nem desatar

sábado, 21 de julho de 2012

mosaico de roupas, cores e forças


 Se sairmos bem cedo de bicicleta, enquanto o trânsito da cidade do Rio de Janeiro está mais ameno, podemos nos deparar com uma  indagação artística a céu aberto. Flanar pelo Rio hoje é dialogar com essas imagens que estão por vários  bairros da cidade, pela Av. Presidente Vargas, pela Lapa, pela Gamboa, Saúde, Santo Cristo, Pedra do Sal, Tijuca, Andaraí, Grajaú,  Morro dos prazeres, Morro da Providência. Nenhum lugar popular ou de elite está imune a esse febre das cores e formas que  está sendo trazida para a cidade. Saindo de bicicleta, de metrô, de trem, de ônibus, de carro, pessoas com suas mochilas e escadas,  seus bonés para enfrentar a luz forte do dia, ou  munidos de sua própria luz , para dialogar com a noite e com a chuva, estão humanizando as paredes, desvirginando os muros,  lutando contra a pureza de um mundo sem cor debaixo dos viadutos, em tapumes, em barcos vivos ou destinados ao cemitério de navios, casas e prédios  previstos para a demolição, pintando as ruínas, os restos, o que ainda há no porto, o que ainda pode haver de vida numa cidade que rebeldemente não quer se submeter ao choque de ordem do imperialismo capitalista com seus prédios vitrificados e metálicos, organizados, administrados, mas sem vida, sem imprevisibilidade, sem o risco da beleza marcadamente humana, lírica, das figuras e rostos de mulheres e homens que habitam nosso cenário visual atual.
      No processo de criação, a arte é interpelada pelos habitantes, uns acham maneiro, outros querem denunciar à polícia ou a quem quer que seja aquilo que, na cabeça deles, não deveria estar ali. Uns se sentem os donos do espaço público e fazem cara feia, outros param e contemplam como crianças, sempre dispostas ao lúdico e ao inesperado, fazem sugestões e interagem, pedem coisas, conversam, contam suas vidas, querem que pintem também suas caixas-de-água, suas casas, seus traillers de cachorro quente.  Momento em que o artista dialoga autenticamente com seus espectadores e com o ambiente porque às vezes há lixo, há lama, há esgoto por perto e  a mania de limpeza  contemporânea , bem representada pelo símbolo do álcool gel, não pode entender o que é isso.
   A história da arte na rua, nas praças, nas cavernas, nos vasos antigos, em lugares permitidos ou não permitidos, ganhou definitivamente muros que não são mais puros nem submissos à arquitetura vitrificada, limpa e padronizada dos prédios urbanos. Por toda parte pode se ver rostos e corpos pintados de homens e mulheres, formas híbridas, mosaico de roupas, cores e forças.  Como se a cidade estivesse se vestindo com outros trajes, como se as roupas que nos envernizam e cobrem nossa condição humana, demasiado humana, tivessem explodido em varais, em tecidos,  homens com formas longilíneas e inusitadas mostrando que as possibilidades de um corpo são múltiplas e não se restringem às formas banais da realidade. Espaço virtual onde  sambistas, ídolos, pessoas comuns são desenhadas para se reconhecerem em seu próprio bairro, em seu próprio lugar, para ganhar com seu rosto na parede uma nova raiz, um novo teto sob o céu livre, uma nova morada.

Pode ser a própria alegria e o grito de angústia da condição humana que esteja por trás de um tão intenso movimento, de uma tão colorida febre e imprevisibilidade.Como dizem, a arte aumenta o mundo , potencializa o mundo, provoca transbordamentos e cria sempre novas possibilidades, abre caminhos, inicia árvores, cria pontes.
 Cores, roupas inéditas  e tintas, sejam cada vez mais bem-vindas.

domingo, 17 de junho de 2012

pequena prece das esculturas ao seu autor

                                                                          Rodin  

podemos ser de carvão
lâminas de gelo ou gesso
a qualquer hora
desfeitos pela mágoa

mas buscando o que não passa
nossas bocas de febre e rito
aterrissam em tuas mãos

e na inquietude do mármore
com hálito de punhal
nos salvas


segunda-feira, 28 de maio de 2012

atlas

                                                                   John Singer Sargent
                                                       


elevadores atlas nas cidades do sul
sustentam o mundo
as pessoas e seus sustos
erva mate madrugada pastoreio
tertúlia
pé sujo com ana júlia
trocando o salto alto com o baixo
pousando na rua da praia com sabrina
no fumódromo sem fumar
essa ave de estrela
compactuando e dividindo
batata frita com picanha
noite de quinta-feira
mulheres livres e tais
que as sombras de Mário Quintana
e seu fantasma
não assombram mais

sábado, 19 de maio de 2012

O Horto

Juazeiro, Juazeiro
o peso de tanta gente
vou levando na ladeira
imagens estilhaçadas
cacos de virgem Maria
santos decapitados
braços e pernas de gesso
corações de cera
partes que foram curadas
estilhaços de uma guerra
mulheres vestidas de preto
dentro de mim vou levando
cruzes pesadas, romeiros
e uma capela de Santa Clara
acesa dentro do peito

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Poeta perdendo a prece

Que poderá o poema nesta noite pouca
em que muito frágil e antiga
tento em vão cobrir-me com uma túnica?

Que poderá o poema contra o frio
contra a nudez batendo sobre as coisas
e minha cara refletida sobre o vidro?

Que poderá ainda
contra o rigor habitual dos edifícios
contra pequenos abismos e misérias

Que poderá contra meu ódio
contra minha inveja
e a manhã que virá com luz fortíssima?

terça-feira, 17 de abril de 2012

Pisciana


Ainda hoje o rádio alto da vizinhança no pátio
crimes soterrados sob a enxurrada de notícias

quebram-se arcos
alçam-se escarpas

e escamas mansas, temerárias, mudas
fazem com que nades e sobrevivas

maquiada e calma
peixe-mulher
solta  livre obstinada
bem no meio da Avenida Paulista

domingo, 1 de abril de 2012

A casa

                                                                          Bosch

Até os ratos abusam de nossa fraqueza
e começam a empestar a casa
De que vale sufocá-los nos buracos
se a brasa que nos resume é muito mais ligeira

Uma coisa enorme e insana
arrasta sua cauda dentro da gente
Nem os barquinhos de papel resistem
nem bonecos de pano nem peças de dominó

Círculos se fecham uns sob os outros
e ali mesmo se quebram
Bichos e anjos se iniciam por todos os lados
e devoram tudo

domingo, 18 de março de 2012

A menina fantasma do internato

Diante das coisas mais óbvias
estanco
como se fossem abismos
Não aprendi a dar os passos decisivos
Tenho desejado corredores longos na penumbra
como nos antigos colégios
É noite, escuro
lá fora os fios da cidade não me alcançam
nem as profissões, nem o futuro
Quero ficar no colégio eterna interna
feito uma menina morta aos treze anos
feito Laura Vicunha, feito as velhas madres
Quero ficar guardada nos retratos para sempre
E com meu corpo de vento
descer e subir escadas
brincar no jardim
E à noite
quando todos partem
e as freiras dormem
ter um colégio
e um mundo todo para mim


sábado, 3 de março de 2012

Um pomar no escuro

                                                              Marco Mazzoni  

                       
                     
                        Marimbondos estalando pelo corpo
                        cacos de vidro verde sobre o muro
                        mínimos guardiões desse desejo
                        de furtar teus frutos
                        e desabotoar essas paredes,
                        calhas, luzes, rochedos
                        que dividem e separam
                        minhas chamas das tuas



segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Cais

                                                                    Ken Wong




Tem sido a mesma obsessão pelos navios
não basta querer que eles venham
é preciso sonhá-los
ancorados em mim
feito jardins de ferro





sábado, 4 de fevereiro de 2012

O Rito de Carmem

                                                                     Oriol Jolonch

Ela é uma forma de alucinação
de hino ao perigo
e ao furor
Perfuma-se com um poema
e se apronta
como quem vai ao cinema

Parece que não há riscos
em tudo que ela faz
mas ela acorda e dorme
sitiada
Mulher em que se atira facas
ela recebe os golpes um a um
Arremessos de perda, luxúria, ciúme

No centro do picadeiro
um homem de olhos vendados
ameaça matá-la
todas as noites
diante dos aplausos inocentes




segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Percurso do vento inundando a ilha

                                                           Shiori Matsumoto


Primeiro vem por mínimas frestas
baixas e estreitas
e se infiltra sob as portas dos cômodos

O extâse de sua viagem marítima
exala então uma inquietação
de dúvida e festa

Ondulando agora feito lâmina
corta novelos e ares
com que trançávamos
nossa vida calma

Clandestino e livre, o vento vem sem pausa
arrancando cercas, afundando barcas
Fulminados estamos
sob suas marcas