A mulher doida me aponta a faca
e me fala
Me chamem da pior rapariga mas
não me chamem de tira-gosto
O burro pertinho comia melancias
Não sei por onde começar essa mulher
com saia vermelha e vassoura
Viver não tem início
A mulher escreve o nome na areia
é Anelita é doida
Estamos no alto da duna
Eu e a doida
eu que também sou Anelita agora e tanto
pois que o mar que nos cerca nos ajunta
Estamos dentro da onda
Eu e Anelita
Ela com sua faca, eu com aquele chapéu da Bolívia
Eu e ela emboloadas
Eu e ela vamos ser queimadas juntas?
A lâmina de sua faca e a lhama do meu chapéu?
Ninguém viu
Nós não rimos, mas no fundo rimos
a mulher doida e eu
a doida e a moça descompassadas
Rimos assim dos nossos rumos incertos
dos remos que nós não temos
para atravessar essa baía tão vasta
Rimos dos nossos crimes
enquanto o sol ia arder do outro lado do mundo
enquanto o menino veio e levou o burro
nós ficamos ali amedrontadas e francas
Há um silêncio nas ruas,
Anelita doida,
um silêncio como a falta de dentes em tua boca
eu vi meninas brincando
fingindo que um bolo de barro
era um bolo de aniversário
vi sacos de carvão empilhados
e pombos no telhado
E tu, Anelita, és mera como isso tudo
e apaixonante como essa chuva
à noitinha
molhando as hortas
Este foi o encontro da mulher doida e eu
sobre a duna
era novembro em Baía Formosa
eu e Anelita, para sempre juntas
terça-feira, 25 de dezembro de 2012
domingo, 2 de dezembro de 2012
Dezembro
Mulher, mulher
não vê que eu tô na paz
vamos sambar um pouquinho
vamos descer comigo
solta esse cabelo, põe uma flor
pegamos o teleférico e depois o metrô
Chama a galera toda
todo mundo no liquidificador
Vamos sambar na praça São Salvador
quem sabe a gente se salva
com o samba na causa
não vê que eu tô na paz
vamos sambar um pouquinho
vamos descer comigo
solta esse cabelo, põe uma flor
pegamos o teleférico e depois o metrô
Chama a galera toda
todo mundo no liquidificador
Vamos sambar na praça São Salvador
quem sabe a gente se salva
com o samba na causa
segunda-feira, 19 de novembro de 2012
A beleza má
Após algumas leituras do filósofo francês Gilles Lipovetsky, autor de livros como A terceira Mulher, A era do vazio, Sociedade da decepção, sugiro alguns pontos de conversação sobre o pensamento da feminilidade no cenário do pensamento a respeito do sujeito contemporâneo.
Lipovetsky insinua algumas imagens
para pensar o feminino. Na fantasia
elaborada pelos homens
e seus mitos,
a primeira
mulher aparece na antiguidade
associada ao caos,
ao funesto, ao trágico,
ao terrível. Força
que amedronta os homens,
celebrada pela fecundidade
mas com
uma beleza associada
à maldade, não
é ainda de modo algum o belo sexo, a imagem
de ternura e bondade
que se consolida no Ocidente,
segundo ele, a partir
das pinturas renascentistas.
Essa seria a “segunda mulher” sagrada, cantada pelos poetas, celebrada pela arte na fantasia masculina. Além dessas duas imagens do feminino que, de alguma maneira, ainda podem perdurar na cultura atual, hoje teríamos uma terceira mulher, cada vez mais inventada por si mesma, mais distante da criação masculina e mais criadora de si própria. No entanto, envolvida no cenário da subjetividade contemporânea cujos desafios partilha igualmente com os homens.
Essa seria a “segunda mulher” sagrada, cantada pelos poetas, celebrada pela arte na fantasia masculina. Além dessas duas imagens do feminino que, de alguma maneira, ainda podem perdurar na cultura atual, hoje teríamos uma terceira mulher, cada vez mais inventada por si mesma, mais distante da criação masculina e mais criadora de si própria. No entanto, envolvida no cenário da subjetividade contemporânea cujos desafios partilha igualmente com os homens.
Apesar dos louvores
aos encantos femininos,
nas representações da Grécia antiga a beleza viril teria uma marca
superior
à beleza feminina, inclusive a famosa Vênus de Milo tem algo de andrógino. Mas
sendo essa beleza entendida
como beleza
má, a mulher está longe
de se colocar no alto
das representações de excelência da cultura.
Helena enseja
a guerra de Troia, Pandora solta todos os males para a humanidade. As
artimanhas de Afrodite, os ciúmes terríveis
de Hera, a maldição
da Medusa, o caos
apaixonado representado por outras figuras como as
bacantes e Medeia. Tudo
isso nos
mostra a mulher
,em geral,
representada como astuciosa,
mentirosa, um
perigo que
se insinua e se oculta sob aspecto sedutor,
portadora da desordem, sua única dignidade é a procriação,
nada de grandioso ela
traz à civilização. Essa beleza
não poderia
ser cultuada com
a mesma ênfase
que a beleza viril, pois é pérfida, nefasta,
ardilosa. E, posteriormente,
na representação cristã, Eva é a autêntica porta
do diabo.
Botticelli
Na cristantade, só a virgem Maria cujo culto e cujas representações iconográficas se intensificaram a partir do século XII possui a inocência da beleza, mas ela é cultuada como virgem e mãe de Cristo muito mais do que como mulher. A mulher na arte medieval continuaria sendo representada como raiz do mal, como “ arma do diabo”. Para se emancipar dessa tradição de maldição seria preciso que a própria arte tivesse uma finalidade não mais religiosa e que a beleza feminina ganhasse outro significado.
Botticelli
Na cristantade, só a virgem Maria cujo culto e cujas representações iconográficas se intensificaram a partir do século XII possui a inocência da beleza, mas ela é cultuada como virgem e mãe de Cristo muito mais do que como mulher. A mulher na arte medieval continuaria sendo representada como raiz do mal, como “ arma do diabo”. Para se emancipar dessa tradição de maldição seria preciso que a própria arte tivesse uma finalidade não mais religiosa e que a beleza feminina ganhasse outro significado.
Segundo Lipovetski, é a partir da Renascença que a mulher ganhou efetivamente os contornos do que poderíamos então chamar o belo sexo associado à perfeição moral. Beleza e bondade feminina se conjugam então como aspectos gêmeos de uma mesma realidade. Ainda que a primeira mulher portadora da malignidade e da desordem selvagem não tenha deixado de habitar o imaginário cultural, inicia-se o reino da prioridade da beleza feminina. Basicamente na criação dos poetas e dos pintores sem que isso significasse efetivamente uma promoção social e intelectual.
Tiziano
Nos séculos XV e XVI , marcados pelo humanismo, a beleza das mulheres passa a ser estimada e admirada como elevação espiritual , a vênus de Boticelli ilustra de modo exemplar essa nova afirmação da beleza feminina. Lipovetsky escreve:
“ Vênus substitui a
virgem. Com a
ressalva de que lhe
toma emprestados os traços
específicos, a pureza,
a doçura celestial.
Aérea, de uma graça
linear e fluida,
a Vênus do pintor
florentino está impregnada de pudor, de vida eterna, de uma expressividade comovente, seu rosto se assemelha mais
a uma Madona do que
ao das deusas antigas.”
Em
outras pinturas, as Vênus
deitadas nos fazem pensar
em uma mulher
cujas forças terríveis
foram apaziguadas, diferentemente
da beleza meduseia e das deusas que
se vingavam de quem via
sua nudez, como Atena se vingou de Tirésias cegando-o, a mulher
deitada e adormecida pode ser contemplada na pintura, é a representação
da tranquilidade, da passividade e brandura. Maneira
de torná-la acessível aos sonhos dos homens. Exaltada nos
círculos cultivados e ricos, a cultura
do belo sexo
se instalou mas não
se universalizou. Para o pensador
francês, durante
cinco séculos,
essa cultura permaneceu elitista e aristocrática.
Manet
Manet
No século XIX, com a literatura decadentista volta a ter relevo a mulher maldita, funesta, bela e impura. Personagens como a cigana Carmen ou a beleza do mal em Baudelaire voltam a acentuar a beleza demoníaca da mulher associada ao trágico, à perversidade e à morte, levando o homem à perdição e ao caos. Assim como a beleza celeste a beleza maldita de vez em quando reaparece no cinema com o estilo das vilãs e da beleza vamp. Mas o que sobretudo passa a ter vigência e nas representações culturais do século XX., segundo Lipovetsky, a partir das décadas de 40 e 50 é um novo estilo: A beleza pin-up muito mais lúdica que tenebrosa, muito mais destinada aos amores sem conseqüência que às paixões devastadoras, presentes nos calendários, nos painéis publicitários, no cinema. Esbelta, elegante, saudável, sorridente se parece mais com uma boneca brincalhona, cheia de vitalidade jovial, afastou-se de qualquer vínculo com o terrível e o trágico. Beleza cuja visão mais eloquente é Marylin Monroe, embora ela mesma entrecortada por seus próprios dramas. Como se o poder terrível da beleza feminina tivesse se interiorizado e se voltado contra as próprias mulheres.
E agora
nos vemos diante
do boom da beleza, o
culto do belo
sexo entrou na era
das massas, perdeu sua
raridade e invadiu a vida
cotidiana, democratizou-se e tomou conta da vida das mulheres em geral. Vivemos a febre
de um ideal
de beleza-magreza-juventude e algumas feministas
chegam a pensar em
um contragolpe:
no momento em
que as mulheres
se libertaram de coerções sexuais, religiosas, sociais,
domésticas, estariam de novo aprisionadas. Após a prisão doméstica, a prisão estética seria nossa
condição. Porém,
segundo Lipovetski mais
que uma desforra
estética machista,
a nova situação
da beleza exprime mais
que tudo
a tecnização do real, o triunfo da razão
que caracteriza a modernidade tomou conta também da aparência, tornando-a passível
de controle e posse,
atingindo embora em
escala menor,
também os homens.
Como já mencionei, ele analisa que a beleza arcaica que amedrontava os homens hoje pode ter se tornado uma forma fantasma de amedrontar as próprias mulheres. Vivida hoje mais como coerção ela se instalaria numa espécie de totalitarismo, de biopolítica muito condizente com todas as prescrições relativas ao corpo. A terceira mulher emancipada, criadora de seu próprio destino, passa a ser talvez também um desafio para as mulheres diante dos impasses das coerções atuais da mídia-publicitária-democrática. E aqui homens e mulheres se deparam com a subjetividade contemporânea delineada por Lipovetsky em outros de seus livros como um sujeito deserto.
Como já mencionei, ele analisa que a beleza arcaica que amedrontava os homens hoje pode ter se tornado uma forma fantasma de amedrontar as próprias mulheres. Vivida hoje mais como coerção ela se instalaria numa espécie de totalitarismo, de biopolítica muito condizente com todas as prescrições relativas ao corpo. A terceira mulher emancipada, criadora de seu próprio destino, passa a ser talvez também um desafio para as mulheres diante dos impasses das coerções atuais da mídia-publicitária-democrática. E aqui homens e mulheres se deparam com a subjetividade contemporânea delineada por Lipovetsky em outros de seus livros como um sujeito deserto.
Nada
contra a beleza
pin-up, contra
a vida confortável
e saudável. Podemos ser
beneficiados pela técnica
mas podemos também
manter acesa
a inevitável dimensão
trágica da vida.
Me soam bem
os versos de Paulo Leminski quando nos
diz que
um homem
e, no nosso caso,
uma mulher com
uma dor é muito
mais elegante.
domingo, 18 de novembro de 2012
Camila
Camila, eu te amo
só vivo pra você,
os filhos, o táxi e o lava-jato
deixa dessa wave
já aprendi a dizer
não bata a porta, please
sou homem trabalhador
faço aspiração simples
dupla aspiração
polimento com cera líquida
polimento cristalizado
troco pneu que é uma coisa
vamos pro motel dreams
tem cinco corações na propaganda
nós e nossos três filhos
tô cheio de amor para dar
Camilinha, deixa disso
manera comigo
Assinado: Wellington
só vivo pra você,
os filhos, o táxi e o lava-jato
deixa dessa wave
já aprendi a dizer
não bata a porta, please
sou homem trabalhador
faço aspiração simples
dupla aspiração
polimento com cera líquida
polimento cristalizado
troco pneu que é uma coisa
vamos pro motel dreams
tem cinco corações na propaganda
nós e nossos três filhos
tô cheio de amor para dar
Camilinha, deixa disso
manera comigo
Assinado: Wellington
sexta-feira, 16 de novembro de 2012
GPS
favela buraco quente
favela coreia
favela indiana
morro da cruz
morro da casa branca
morro dos prazeres
morro quieto
morro do telégrafo
morro da liberdade
morro da providência
favela dona marta
favela do borel
favela conjunto residencial
dos servidores municipais
favela bela vista da pichuna
favela avenida
favela tremendê
favela céu azul
morro do dendê
morro do alemão
morro da baiana
favela mangueira
morro do bananal
favela babilônia
favela cerro corá
favela guararapes
favela borda do mato
morro dos cabritos
morro dos macacos
morro dos urubus
ladeira dos tabajaras
favela do rato
perto da rua iracema
favela coreia
favela indiana
morro da cruz
morro da casa branca
morro dos prazeres
morro quieto
morro do telégrafo
morro da liberdade
morro da providência
favela dona marta
favela do borel
favela conjunto residencial
dos servidores municipais
favela bela vista da pichuna
favela avenida
favela tremendê
favela céu azul
morro do dendê
morro do alemão
morro da baiana
favela mangueira
morro do bananal
favela babilônia
favela cerro corá
favela guararapes
favela borda do mato
morro dos cabritos
morro dos macacos
morro dos urubus
ladeira dos tabajaras
favela do rato
perto da rua iracema
domingo, 11 de novembro de 2012
parede, parada, pandeiro
a mulher anda doida comigo
achando que eu tô atrás de piranha
só porque toco pandeiro
ganho cachê de setenta reais
e ela não pode ir
tá querendo me bater
não fala nada não que ela bate mesmo
me bater é mole
quero ver é pagar minhas contas
fui do tráfico, da vigilância
capoeira na terra firme
agora estou na construção civil
tenho cartão de crédito
foi a pior coisa do mundo que inventaram
tô todo endividado, mas hoje é domingo
bebo um pouquinho, fico embrasado
internet? não uso essa parada não
a mulher tá vindo aí, fudeu, fui
depois volta aqui que eu vou
arrumar uma parede neurótica
para você mandar um poema
valeu ?
achando que eu tô atrás de piranha
só porque toco pandeiro
ganho cachê de setenta reais
e ela não pode ir
tá querendo me bater
não fala nada não que ela bate mesmo
me bater é mole
quero ver é pagar minhas contas
fui do tráfico, da vigilância
capoeira na terra firme
agora estou na construção civil
tenho cartão de crédito
foi a pior coisa do mundo que inventaram
tô todo endividado, mas hoje é domingo
bebo um pouquinho, fico embrasado
internet? não uso essa parada não
a mulher tá vindo aí, fudeu, fui
depois volta aqui que eu vou
arrumar uma parede neurótica
para você mandar um poema
valeu ?
domingo, 4 de novembro de 2012
Calipso
Quando voltavas à tua casa
era de mim que partias
eram minhas as ventanias
Invoquei tormentas
potestades marinhas
qualquer coisa para quebrar teu rumo
Mas uma frágil canoa
foi mais forte
Eu conhecia feitiço, gozo, beleza
Nada que impedisse
um homem de um regresso
virei uma ilha, estilha, estame
uma fêmea estéril entre as ondas
E nem sabia como ser errante
para encontrar uma pátria
para inventar um porto
onde enterrar tua perda
Poema publicado em Invenção de Eurídice, 2004.
era de mim que partias
eram minhas as ventanias
Invoquei tormentas
potestades marinhas
qualquer coisa para quebrar teu rumo
Mas uma frágil canoa
foi mais forte
Eu conhecia feitiço, gozo, beleza
Nada que impedisse
um homem de um regresso
virei uma ilha, estilha, estame
uma fêmea estéril entre as ondas
E nem sabia como ser errante
para encontrar uma pátria
para inventar um porto
onde enterrar tua perda
Poema publicado em Invenção de Eurídice, 2004.
sábado, 3 de novembro de 2012
Dioniso diante de Apolo
Agora que acalmaste meu tornado
e que aceitei tua flecha
sobre a minha carne
Agora que me fecundaste com a medida
e que me deste margens
Agora que pousaste a mão
sobre o meu medo
Vês como as palavras nascem de mim
pausadas
e como tornei-me brisa
ateada sobre o pranto?
Desde que me concedeste tua máscara,
deus solar,
a noite que eu trazia
perdeu o gume terrível
Vem, amigo, vem ver
como, mesmo diante do sangue,
tornamos bela
a dor para esses gregos
Poema publicado em Invenção de Eurídice, 2004
e que aceitei tua flecha
sobre a minha carne
Agora que me fecundaste com a medida
e que me deste margens
Agora que pousaste a mão
sobre o meu medo
Vês como as palavras nascem de mim
pausadas
e como tornei-me brisa
ateada sobre o pranto?
Desde que me concedeste tua máscara,
deus solar,
a noite que eu trazia
perdeu o gume terrível
Vem, amigo, vem ver
como, mesmo diante do sangue,
tornamos bela
a dor para esses gregos
Poema publicado em Invenção de Eurídice, 2004
segunda-feira, 29 de outubro de 2012
Nietzsche e a serenidade grega
(...) A interpretação nietzschiana para o conceito de serenidade grega será desdobrada em diversas perspectivas. De um lado, o equívoco estético que a tradição teria cometido derivando a concepção da origem da arte grega apenas através da miragem apolínea. De outro lado, o modo como essa pretensa serenidade degenerou na serenidade teórico-socrática, entendida como conforto não ameaçado, como serenidade proporcionada pelo conhecimento que seria, na visão de Nietzsche, a base do otimismo frívolo na arte e do otimismo teórico na ciência.
Diante desse problema, a hipótese nietzschiana é extremamente fecunda. Segundo o pensador , a chamada serenidade ou jovialidade grega não era senão uma máscara apolínea diante do abismo terrível da existência representado por Dioniso. Ou seja, a tal " cor rosada" da jovialidade grega foi uma estratégia que esse povo teria encontrado para tornar a vida suportável diante do fundamento do ser como contradição e dor.
A imagem usada por Nietzsche é a ideia de Goethe de uma cruz coberta por rosas. Teríamos a dor do mundo expressa pela cruz, e as rosas como delicada superfície sobre a qual nos apoiamos para mantermos nossa fé e nosso amor pela vida. Dessa forma, todo o pendor dos gregos para as festas, para as celebrações religiosas, para a transfiguração da dor na obra de arte trágica não seria senão a estratégia genial de um povo para escapar do absurdo da existência e de um possível desencantamento do mundo. Uma estratégia para evitar tanto a fuga para o nada dos indianos como o apego material e militar pela vida que se expressou depois no Império Romano.
Os gregos ter-nos-iam então proporcionado esse grande ensinamento de gratidão pela existência, de afirmação incondicional e festiva da vida e nos teriam mostrado que, ao ser transfigurada em beleza, a dor não conta como objeção à vida, mas, ao contrário, serve de estimulante e torna a existência ainda mais fecunda. Não por acaso, o filósofo termina seu livro O nascimento da tragédia com a exclamação do quanto precisou sofrer esse povo para vir a ser tão belo.
Iracema Macedo in trecho de capítulo" Sobre a noção de serenidade no pensamento de Nietzsche" publicado em O cômico e o trágico. Rio de Janeiro: editora 7 letras, 2008.
domingo, 28 de outubro de 2012
Manobras de atracação e desatracação
Goya
quase não lembro deles
antes de serem capturados
pela lenta escuridão que os afastou
de todas as possibilidades lúcidas
mesmo nesse lugar quieto,
administrado, envidraçado,
com luzes fluorescentes,
a hesitação faz a ronda
há ainda nuvens, cegueiras
a tristeza de uma pele diante da outra
um rosto diante do outro
e as bocas de todos que falam
sufocando seus desastres
domingo, 21 de outubro de 2012
Zarabatanas
Jason Martin
Ninguém esperava mais
por esses cabelos imensos
por esses olhos de fera
esse meu ar de arco e flecha
Zarabatanas eu faço
com mãos de índio bravo
ponho o curare na ponta
paraliso os ventos errados
e só atraio belos raios
Ninguém esperava mais
por esses cabelos imensos
por esses olhos de fera
esse meu ar de arco e flecha
Zarabatanas eu faço
com mãos de índio bravo
ponho o curare na ponta
paraliso os ventos errados
e só atraio belos raios
sábado, 13 de outubro de 2012
Luísa
Combone
Não sou precisa
nem sólida ou líquida
Sou matéria que hesita
entre muitas feridas
Não sou precisa
não tenho fórmula
não me equaciono
não tenho lógica,
meu caro,
lamento
não tenho siso nem senso
e ando vestida de vento
sexta-feira, 5 de outubro de 2012
Arthur Bispo do Rosário
a João Marcelino
Me prendam que estou
me transformando
em rei em verso em canto
Que venham as virgens em cardumes
Que venham moinhos e gigantes
Por onde passo as coisas
hesitam por seus nomes
tal a minha fúria
Vestem-me de louco
mas sou apenas
um arquiteto de retalhos
Enquanto outros acendem
lampiões estradas pontes
acendo reinos dulcineias cartas
Bordo delírios em panos
De tudo que acho perdido
teço um manto e um sonho
Chamam-me de louco
Quem venham as virgens em cardumes
Sou apenas
um arquiteto de miragens
sexta-feira, 28 de setembro de 2012
As Vestes
TRAMAS : Recital de música e poesia com autores variados. Casa da Ribeira, Julho de 2012, Natal-RN. Interpretação teatral de Clotilde Tavares, canções na voz de Heliana Pinheiro e guitarra de Joca Costa.
terça-feira, 25 de setembro de 2012
Prisões
Antes eu era o incêndio
agora faço seguro contra fogo
contra roubos
Eu mesma era furacão
eu mesma roubava
agora apaziguo tudo e tranco
Antes eu era as perdas
agora sou vista pelo bairro, precavida,
comprando cadeados sob medida
agora faço seguro contra fogo
contra roubos
Eu mesma era furacão
eu mesma roubava
agora apaziguo tudo e tranco
Antes eu era as perdas
agora sou vista pelo bairro, precavida,
comprando cadeados sob medida
quinta-feira, 20 de setembro de 2012
Vestuário de Sísifo
Nino Cais
estou repetindo as roupas
como se fossem farda
como se fossem fardo
estou refazendo a família
o álbum de atos ratos
e retratos
e todos os demais
hábitos e fracassos
estou repetindo as roupas
como se fossem farda
como se fossem fardo
estou refazendo a família
o álbum de atos ratos
e retratos
e todos os demais
hábitos e fracassos
segunda-feira, 17 de setembro de 2012
Amar, verbo atemporal
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sábado, 8 de setembro de 2012
Corveta
Bispo do Rosário (Veleiro)
para Arthur Bispo do Rosário
No estaleiro
consertando presságios,
crianças guardadas e briquedos,
estacionei com âncoras e garras
pousei com ossos frágeis, radiografias
plumas inchadas pela chuva
esperando voltar aos mares
sanguíneo
voraz
refeito de todo dano
respirando de novo pelos panos
para Arthur Bispo do Rosário
No estaleiro
consertando presságios,
crianças guardadas e briquedos,
estacionei com âncoras e garras
pousei com ossos frágeis, radiografias
plumas inchadas pela chuva
esperando voltar aos mares
sanguíneo
voraz
refeito de todo dano
respirando de novo pelos panos
domingo, 2 de setembro de 2012
paixão no muro
domingo, 22 de julho de 2012
hidráulicos
a infiltração no gesso
gota a gota no ritmo
sossegado do peito
sangue cristalino
se esvaindo no corredor
a vida transbordando de tal jeito
que nem os canos de ferro, os cadeados
gavetas, armários
nem chaves nem senhas
poderão voltar a rasgar
eis-nos todos infiltrados
enredados
ligados de tal forma
que nenhuma tesoura ou navio
voltará a trancar nem desatar
sábado, 21 de julho de 2012
mosaico de roupas, cores e forças
Se sairmos bem cedo de bicicleta, enquanto o trânsito da cidade do Rio de Janeiro está mais ameno, podemos nos deparar com uma indagação artística a céu aberto. Flanar pelo Rio hoje é dialogar com essas imagens que estão por vários bairros da cidade, pela Av. Presidente Vargas, pela Lapa, pela Gamboa, Saúde, Santo Cristo, Pedra do Sal, Tijuca, Andaraí, Grajaú, Morro dos prazeres, Morro da Providência. Nenhum lugar popular ou de elite está imune a esse febre das cores e formas que está sendo trazida para a cidade. Saindo de bicicleta, de metrô, de trem, de ônibus, de carro, pessoas com suas mochilas e escadas, seus bonés para enfrentar a luz forte do dia, ou munidos de sua própria luz , para dialogar com a noite e com a chuva, estão humanizando as paredes, desvirginando os muros, lutando contra a pureza de um mundo sem cor debaixo dos viadutos, em tapumes, em barcos vivos ou destinados ao cemitério de navios, casas e prédios previstos para a demolição, pintando as ruínas, os restos, o que ainda há no porto, o que ainda pode haver de vida numa cidade que rebeldemente não quer se submeter ao choque de ordem do imperialismo capitalista com seus prédios vitrificados e metálicos, organizados, administrados, mas sem vida, sem imprevisibilidade, sem o risco da beleza marcadamente humana, lírica, das figuras e rostos de mulheres e homens que habitam nosso cenário visual atual.
No processo de criação, a arte é interpelada pelos habitantes, uns acham maneiro, outros querem denunciar à polícia ou a quem quer que seja aquilo que, na cabeça deles, não deveria estar ali. Uns se sentem os donos do espaço público e fazem cara feia, outros param e contemplam como crianças, sempre dispostas ao lúdico e ao inesperado, fazem sugestões e interagem, pedem coisas, conversam, contam suas vidas, querem que pintem também suas caixas-de-água, suas casas, seus traillers de cachorro quente. Momento em que o artista dialoga autenticamente com seus espectadores e com o ambiente porque às vezes há lixo, há lama, há esgoto por perto e a mania de limpeza contemporânea , bem representada pelo símbolo do álcool gel, não pode entender o que é isso.
A história da arte na rua, nas praças, nas cavernas, nos vasos antigos, em lugares permitidos ou não permitidos, ganhou definitivamente muros que não são mais puros nem submissos à arquitetura vitrificada, limpa e padronizada dos prédios urbanos. Por toda parte pode se ver rostos e corpos pintados de homens e mulheres, formas híbridas, mosaico de roupas, cores e forças. Como se a cidade estivesse se vestindo com outros trajes, como se as roupas que nos envernizam e cobrem nossa condição humana, demasiado humana, tivessem explodido em varais, em tecidos, homens com formas longilíneas e inusitadas mostrando que as possibilidades de um corpo são múltiplas e não se restringem às formas banais da realidade. Espaço virtual onde sambistas, ídolos, pessoas comuns são desenhadas para se reconhecerem em seu próprio bairro, em seu próprio lugar, para ganhar com seu rosto na parede uma nova raiz, um novo teto sob o céu livre, uma nova morada.
Pode ser a própria alegria e o grito de angústia da condição humana que esteja por trás de um tão intenso movimento, de uma tão colorida febre e imprevisibilidade.Como dizem, a arte aumenta o mundo , potencializa o mundo, provoca transbordamentos e cria sempre novas possibilidades, abre caminhos, inicia árvores, cria pontes.
Cores, roupas inéditas e tintas, sejam cada vez mais bem-vindas.
domingo, 17 de junho de 2012
pequena prece das esculturas ao seu autor
Rodin
podemos ser de carvão
lâminas de gelo ou gesso
a qualquer hora
desfeitos pela mágoa
mas buscando o que não passa
nossas bocas de febre e rito
aterrissam em tuas mãos
e na inquietude do mármore
com hálito de punhal
nos salvas
podemos ser de carvão
lâminas de gelo ou gesso
a qualquer hora
desfeitos pela mágoa
mas buscando o que não passa
nossas bocas de febre e rito
aterrissam em tuas mãos
e na inquietude do mármore
com hálito de punhal
nos salvas
segunda-feira, 28 de maio de 2012
atlas
John Singer Sargent
elevadores atlas nas cidades do sul
sustentam o mundo
as pessoas e seus sustos
erva mate madrugada pastoreio
tertúlia
pé sujo com ana júlia
trocando o salto alto com o baixo
pousando na rua da praia com sabrina
no fumódromo sem fumar
essa ave de estrela
compactuando e dividindo
batata frita com picanha
noite de quinta-feira
mulheres livres e tais
que as sombras de Mário Quintana
e seu fantasma
não assombram mais
elevadores atlas nas cidades do sul
sustentam o mundo
as pessoas e seus sustos
erva mate madrugada pastoreio
tertúlia
pé sujo com ana júlia
trocando o salto alto com o baixo
pousando na rua da praia com sabrina
no fumódromo sem fumar
essa ave de estrela
compactuando e dividindo
batata frita com picanha
noite de quinta-feira
mulheres livres e tais
que as sombras de Mário Quintana
e seu fantasma
não assombram mais
sábado, 19 de maio de 2012
O Horto
Juazeiro, Juazeiro
o peso de tanta gente
vou levando na ladeira
imagens estilhaçadas
cacos de virgem Maria
santos decapitados
braços e pernas de gesso
corações de cera
partes que foram curadas
estilhaços de uma guerra
mulheres vestidas de preto
dentro de mim vou levando
cruzes pesadas, romeiros
e uma capela de Santa Clara
acesa dentro do peito
o peso de tanta gente
vou levando na ladeira
imagens estilhaçadas
cacos de virgem Maria
santos decapitados
braços e pernas de gesso
corações de cera
partes que foram curadas
estilhaços de uma guerra
mulheres vestidas de preto
dentro de mim vou levando
cruzes pesadas, romeiros
e uma capela de Santa Clara
acesa dentro do peito
sexta-feira, 4 de maio de 2012
Poeta perdendo a prece
Que poderá o poema nesta noite pouca
em que muito frágil e antiga
tento em vão cobrir-me com uma túnica?
Que poderá o poema contra o frio
contra a nudez batendo sobre as coisas
e minha cara refletida sobre o vidro?
Que poderá ainda
contra o rigor habitual dos edifícios
contra pequenos abismos e misérias
Que poderá contra meu ódio
contra minha inveja
e a manhã que virá com luz fortíssima?
em que muito frágil e antiga
tento em vão cobrir-me com uma túnica?
Que poderá o poema contra o frio
contra a nudez batendo sobre as coisas
e minha cara refletida sobre o vidro?
Que poderá ainda
contra o rigor habitual dos edifícios
contra pequenos abismos e misérias
Que poderá contra meu ódio
contra minha inveja
e a manhã que virá com luz fortíssima?
terça-feira, 17 de abril de 2012
Pisciana
Ainda hoje o rádio alto da vizinhança no pátio
crimes soterrados sob a enxurrada de notícias
quebram-se arcos
alçam-se escarpas
e escamas mansas, temerárias, mudas
fazem com que nades e sobrevivas
maquiada e calma
peixe-mulher
solta livre obstinada
bem no meio da Avenida Paulista
domingo, 1 de abril de 2012
A casa
Bosch
Até os ratos abusam de nossa fraqueza
e começam a empestar a casa
De que vale sufocá-los nos buracos
se a brasa que nos resume é muito mais ligeira
Uma coisa enorme e insana
arrasta sua cauda dentro da gente
Nem os barquinhos de papel resistem
nem bonecos de pano nem peças de dominó
Círculos se fecham uns sob os outros
e ali mesmo se quebram
Bichos e anjos se iniciam por todos os lados
e devoram tudo
Até os ratos abusam de nossa fraqueza
e começam a empestar a casa
De que vale sufocá-los nos buracos
se a brasa que nos resume é muito mais ligeira
Uma coisa enorme e insana
arrasta sua cauda dentro da gente
Nem os barquinhos de papel resistem
nem bonecos de pano nem peças de dominó
Círculos se fecham uns sob os outros
e ali mesmo se quebram
Bichos e anjos se iniciam por todos os lados
e devoram tudo
domingo, 18 de março de 2012
A menina fantasma do internato
Diante das coisas mais óbvias
estanco
como se fossem abismos
Não aprendi a dar os passos decisivos
Tenho desejado corredores longos na penumbra
como nos antigos colégios
É noite, escuro
lá fora os fios da cidade não me alcançam
nem as profissões, nem o futuro
Quero ficar no colégio eterna interna
feito uma menina morta aos treze anos
feito Laura Vicunha, feito as velhas madres
Quero ficar guardada nos retratos para sempre
E com meu corpo de vento
descer e subir escadas
brincar no jardim
E à noite
quando todos partem
e as freiras dormem
ter um colégio
e um mundo todo para mim
estanco
como se fossem abismos
Não aprendi a dar os passos decisivos
Tenho desejado corredores longos na penumbra
como nos antigos colégios
É noite, escuro
lá fora os fios da cidade não me alcançam
nem as profissões, nem o futuro
Quero ficar no colégio eterna interna
feito uma menina morta aos treze anos
feito Laura Vicunha, feito as velhas madres
Quero ficar guardada nos retratos para sempre
E com meu corpo de vento
descer e subir escadas
brincar no jardim
E à noite
quando todos partem
e as freiras dormem
ter um colégio
e um mundo todo para mim
sábado, 3 de março de 2012
Um pomar no escuro
Marco Mazzoni
Marimbondos estalando pelo corpo
cacos de vidro verde sobre o muro
mínimos guardiões desse desejo
de furtar teus frutos
e desabotoar essas paredes,
calhas, luzes, rochedos
que dividem e separam
minhas chamas das tuas
Marimbondos estalando pelo corpo
cacos de vidro verde sobre o muro
mínimos guardiões desse desejo
de furtar teus frutos
e desabotoar essas paredes,
calhas, luzes, rochedos
que dividem e separam
minhas chamas das tuas
segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012
Cais
Ken Wong
Tem sido a mesma obsessão pelos navios
não basta querer que eles venham
é preciso sonhá-los
ancorados em mim
feito jardins de ferro
Tem sido a mesma obsessão pelos navios
não basta querer que eles venham
é preciso sonhá-los
ancorados em mim
feito jardins de ferro
sábado, 4 de fevereiro de 2012
O Rito de Carmem
Oriol Jolonch
Ela é uma forma de alucinação
de hino ao perigo
e ao furor
Perfuma-se com um poema
e se apronta
como quem vai ao cinema
Parece que não há riscos
em tudo que ela faz
mas ela acorda e dorme
sitiada
Mulher em que se atira facas
ela recebe os golpes um a um
Arremessos de perda, luxúria, ciúme
No centro do picadeiro
um homem de olhos vendados
ameaça matá-la
todas as noites
diante dos aplausos inocentes
Ela é uma forma de alucinação
de hino ao perigo
e ao furor
Perfuma-se com um poema
e se apronta
como quem vai ao cinema
Parece que não há riscos
em tudo que ela faz
mas ela acorda e dorme
sitiada
Mulher em que se atira facas
ela recebe os golpes um a um
Arremessos de perda, luxúria, ciúme
No centro do picadeiro
um homem de olhos vendados
ameaça matá-la
todas as noites
diante dos aplausos inocentes
sábado, 7 de janeiro de 2012
segunda-feira, 2 de janeiro de 2012
Percurso do vento inundando a ilha
Shiori Matsumoto
Primeiro vem por mínimas frestas
baixas e estreitas
e se infiltra sob as portas dos cômodos
O extâse de sua viagem marítima
exala então uma inquietação
de dúvida e festa
Ondulando agora feito lâmina
corta novelos e ares
com que trançávamos
nossa vida calma
Clandestino e livre, o vento vem sem pausa
arrancando cercas, afundando barcas
Fulminados estamos
sob suas marcas
Primeiro vem por mínimas frestas
baixas e estreitas
e se infiltra sob as portas dos cômodos
O extâse de sua viagem marítima
exala então uma inquietação
de dúvida e festa
Ondulando agora feito lâmina
corta novelos e ares
com que trançávamos
nossa vida calma
Clandestino e livre, o vento vem sem pausa
arrancando cercas, afundando barcas
Fulminados estamos
sob suas marcas
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